segunda-feira, 22 de junho de 2020

O cão não tem casota!


Diz-se que há sempre uma razão para tudo. Eu gosto de escrever. Porque será? De onde me vem o gosto ou a predisposição?
A minha primeira professora foi a D. Josefina, amiga da minha mãe, que me aceitou na sua escola de uma freguesia vizinha daquela onde eu morava. Na minha aldeia havia apenas uma escola para meninos de todas as classes e a professora alegou que tinha alunos a mais para justificar a sua recusa em me aceitar. E foi adiantando, "ele ainda só fez 6 anos em Março e pode muito bem ficar para o ano". No ano seguinte, cheguei lá com a Primeira Classe feita e ela foi peremptória:
- Isso não serve de nada, aqui começa de novo na Primeira Classe.
Atrasou-me a minha vida um ano inteirinho, mas não foi o fim do mundo por causa disso. Alguns colegas de turma já eram repetentes e outros acabaram por perder um ou dois anos, durante o percurso escolar e saíram da escola mais velhinhos que eu.
Mas voltemos ao tema da escrita que é o que aqui me trouxe. Naquele ano em que estudei na escola da D. Josefina, eu tinha um colega de carteira chamado Licínio (que, por acaso, nunca encontrei na minha vida adulta) que passava o tempo a embirrar comigo. Tudo lhe servia para me levar à serra. Um dia deixou-me cair um borrão de tinta - lembram-se daqueles tinteiros de porcelana embutidos na carteira cheios de tinta permanente, onde nós molhávamos a pela para desenhar as letras no nosso caderno de caligrafia? - no meu caderno. Olhei para ele com cara de zangado e ele desatou a rir-se. Aí passei-me dos carretos, tirei o tinteiro do seu repostório e despejei-lho em cima do caderno.
Daí para a frente foi um teatro, mãos cheias de tinta, roupa estragada e a professora atrapalhada para nos manter quietos. Acabámos os dois castigados e o meu castigo foi escrever 100 vezes a frase seguinte:
- O cão não tem casota!
Todos os dias mostrava à professora o progresso do meu trabalho e ele nunca reclamou pelo tempo que demorei a concluí-lo. Não me recordo se o Licínio apanhou um castigo igual ou pior que o meu, mas como era vizinho da professora e havia uma grande relação de proximidade entre os seus pais e a D. Josefina, talvez tenha escapado ao castigo. E como fui eu o responsável pela "grande cena" e me viram com o tinteiro na mão, acabei com a maior parte das culpas.
Uma meia dúzia de anos depois, já como aluno interno do Colégio, em Coimbra, dei o tiro a uma aula de ginástica, numa quinta-feira de manhã - às quintas não havia aulas e a manhã era ocupada com uma aula de Ginástica e depois recreio até à hora do almoço - por me terem dito que o professor tinha ido para Coimbra, levar alunos ao dentista, coisa que era bastante frequente. Era Primavera, eu e um amigo da zona de Lisboa fomos aos ninhos.
Ir aos ninhos era um desporto que os rapazes da aldeia, como eu, adoravam. Seguir a passarada, descobrir-lhe o ninho, subir às árvores e tudo o mais que se seguia. Para o meu colega lisboeta era tudo novidade, nunca subira a uma árvore nem violara nenhum ninho, nem sequer conhecia o nome dos pássaros que havia em grande quantidade na mata do Colégio.
A páginas tantas, estava eu empoleirado a dez metros de altura e coscuvilhar um ninho de rola, quando ouvi o som do apito do professor de ginástica, no campo de futebol, prrri, prrri, prrri. Oh, diabo, pensei eu, enquanto me apressava a descer da árvore, afinal houve aula e agora estamos bem arranjados. Regressámos rapidamente às imediações do campo de futebol, mas vestidos como estávamos, achamos melhor ficar escondidos até que a aula acabasse.
O colégio tinha um regulamento interno que se apresentava num pequeno livro, formato de bolso, com cerca de 30 páginas. No período da manhã, tínhamos um recreio de meia hora, logo a seguir à primeira aula da manhã. Deram-me de castigo, copiar, na íntegra, o regulamento do colégio, usando para isso esse recreio da manhã, até completar a tarefa. Resultado, fiquei sem recreio cerca de um mês, tempo que demorei a cumprir o castigo.
Mas fiquei a conhecer o regulamento a fundo e devo ter apanhado aí o vício de escrever. Depois disso, veio o tempo de Marinha, da Guerra em África, e a necessidade de manter o contacto com as namoradas e Madrinhas de Guerra fez o resto.

6 comentários:

  1. Bom dia
    Os castigos nessa altura eram possíveis , queria ver hoje um castigo desses .

    J R

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  2. Nesse tempo a juventude tinha um comportamento diferente daquele que a juventude actual tem. Não havia libertade, havia mais medo do que respeito.
    Hoje não há medo nem respeito. Uma grande parte da população está-se marimbando para as leis que no seu entender não são para cumprir.

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  3. Em 1971 cruzei-me o meu último professor de matemática (EC Patrício Prazeres) em Metangula. Nem queria acreditar, nem eu nem ele. Ainda pediu ao meu comandante para me porem na secretaria mas sem sucesso. O pessoal dos Abastecimentos estava lá para isso… Nunca mais o vi nem me lembro o nome mas certamente que a imagem de um oficial entrar na caserna e perguntar por mim, valeu-me ser o herói do dia…

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    1. Eu também fui esbarrar com um colega de turma da 4ª Classe, no Cobué. Ao saltar da lancha para o cais dei de caras com ele e nem queria acreditar:
      - Tu, aqui, como é possível?
      Foi o único conterrâneo que encontrei em África, nos 5 anos que por lá andei.

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  4. O meu marido encontrou em Nampula o antigo barbeiro do pai, e seu cabeleireiro até aos 13 anos.
    Abraço e saúde

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  5. Ola Camarada, ficas-te doente ? Nao te apoquentes que o Lage nao perdeu o apetite nem a " paga" . Um abraço

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