sábado, 18 de abril de 2020

Anos marcantes - 1955 !!!


Para não voltar ao vírus que está a pôr a cabeça em água a mais de meio mundo, vou de novo ao meu assunto de ontem, as memórias de antigamente. E como há muitos anos que são vazios de acontecimentos marcantes, optei por seguir um rumo diferente, pegar naqueles que me deixaram recordações, boas ou más, e esquecer os outros.
O ano de 1955 foi marcante na minha vida, completei a 4ª Classe da Instrução Primária - nessa altura de vida dos portugueses era "quase" um curso superior - e fui internado num colégio interno, próximo de Coimbra, onde fiquei enclausurado durante 4 longos anos. Cada um desses episódios dava um romance completo, se me atrevesse a escrevê-lo.
No primeiro caso, porque viver numa aldeia, distante da sede do concelho, fazia com que o exame fosse uma epopeia digna de registo. Era preciso arranjar uma roupinha mais apresentável, um calçado a condizer - um problema bicudo para quem foi criado com o pé descalço - organizar o transporte de ida e volta, num tempo em que não havia transportes públicos a não ser o comboio que não passava em todo o lado, etc., etc..
A nervoseira que atacava os alunos pouco habituados a essas andanças por lugares desconhecidos e diante de pessoas que nunca tinham visto, era suficiente para pôr em perigo o resultado do exame a que os jovens candidatos se apresentavam. Já antes disso, talvez um mês ou dois, me tinha deslocado à sede do concelho para fazer uma foto e pedir a emissão do «Bilhete de Identidade», sem o qual não me podia apresentar a exame. Meio de transporte, o mais antigo do mundo, "à la patte", 9 kms à ida e outros tantos no regresso.
No dia do exame, foi preciso levantar cedo, pois as abluções matinais e o vestir eram demorados e às 9 em ponto tínhamos que estar sentadinhos na carteira, onde iríamos provar se merecíamos ou não o famoso diploma da 4ª Classe que nos faria entrar no rol (restrito) dos sabichões deste país. O transporte fora organizado pela Junta de Freguesia, num táxi de 7 lugares que havia na minha freguesia e fez várias viagens para cá e para lá e que pagamos entre todos. Tudo isso e mais o que fica por contar, fez desse momento um dos mais marcantes da minha vida.
Depois do exame feito, havia que dar um rumo à vida. As alternativas não eram muitas, ou continuar os estudos ou ingressar na vida activa da aldeia que vivia da agricultura. Por essa altura, apareceu lá por casa o pároco da aldeia perguntando à minha mãe se eu teria vocação para estudar para padre. Uma senhora rica da minha freguesia tinha um filho que pertencia à Companhia de Jesus, era portanto um padre jesuíta. Por razões que não conheço, essa senhora fez uma promessa de custear os estudos de um qualquer rapaz que se quisesse juntar ao filho, nos Jesuítas e tinha encarregado o pároco que era, simultâneamente, seu confessor, para lhe desencantar o candidato entre os finalistas desse ano.
Calhou-me a mim a rifa. Eu reunia as condições exigidas e a minha mãe ficou toda contente. Não fui ouvido nem achado nessa matéria, limitei-me a ir para onde me mandavam e fazer aquilo que me estava destinado. Nesse tempo, os Jesuítas tinham um colégio em Lisboa e outro em Macieira de Cambra, mas tinham decidido encerrar este e abrir um novo, em Cernache, junto a Condeixa-a-Nova, numa quinta que tinham adquirido para o efeito. Calhou-me a mim e mais meia centena de colegas ir estrear essas instalações, em Outubro desse marcante ano de 1955.
O mesmo táxi que me tinha levado a Barcelos, para o exame da quarta, levou-me à estação das Devesas, em Vila Nova de Gaia, para eu apanhar o comboio e rumar a Coimbra, onde tinha encontro marcado com um padre, enviado pelo colégio, e todos os outros colegas, oriundos do norte de Portugal. Foi uma viagem épica, a minha primeira num comboio a carvão que largava fumaça como uma chaminé de fábrica e fazia soar a sua "gaita" em cada curva e cruzamento, avisando os peões para lhe saírem do caminho. Pare, escute, olhe - É proibido o trânsito pela Linha, lembram-se deste aviso?
Mas antes desse dia, tinha sido uma verdadeira azáfama lá em casa. O colégio tinha enviado uma lista das roupas que eu tinha que levar, pessoais, de cama, de banho, todas marcadas com o número 57 para poderem circular pela lavandaria e rouparia sem se perderem. Foi esse o primeiro número que usei na minha vida e durou 4 longos anos. E depois havia a escova da roupa e dos sapatos, a dos dentes e o respectivo dentífrico, além do pente e outras coisas que já não recordo. Tudo isto acondicionado numa mala de porão, como aquelas que usavam as pessoas quando iam para o Brasil e tinham que levar consigo todos os seus pertences.
Tudo isto passou do táxi para o comboio num abrir e fechar de olhos e com as recomendações do pároco que me tinha acompanhado até ali, lá parti eu rumo ao desconhecido e a uma vida nova.

4 comentários:

  1. Depois de ter lido, esse pequeno resumo das tuas memórias. O qual se refere ao periodo da tua juventude. Posso dizer sem margem de duvidas, de que, ao tempo, tiveste uma juventude de luxo. Pela oportunidade que te foi concedida para estudares sem mais preocupações de outros afazes.
    Bom fim de semana. Um abraço.

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  2. Tudo o que mencionaste revela tempos de então e, sem qualquer dúvida, é apenas uma amostra do atraso existente, sem esquecer a miséria sem limite sofrida pela grande maioria da população . Não sou dos que tenho razões de queixa de maior, mas isso não me impede de reconhecer o sofrimento de outros, bem como o quanto de péssimo existia a quase todos os níveis, agravado por arbitrariedades daqueles que não sabiam o que era dignidade humana e que, por sua iniciativa/poder ou armados em fantoches, praticavam o que demais repugnante e intolerável se pode admitir ; portanto, com tal gente, o obscurantismo e incapacidade para o desenvolvimento era mais do que evidente ; apenas, uns brasonados e outros caciques, viviam bem à custa das dificuldades dos restantes . Afinal, tiveste muita sorte em beneficiar de bênção paroquial ; pois, naquele tempo, muitos padres eram mestres da influência e, ainda, missionários do poder instituído, enquanto que os pobres eram os seus paroquianos obedientes e resignados a aceitar de boa fé e sem contestar o fatalismo que lhes batesse à porta . Era assim e ai dos que discordassem ... Efectivamente, argumentar/tentar justificar o que não é justificável não serve para nada, muito menos bater com a mão no peito e evocar o nome de Deus com toda a facilidade e, ao fim e ao cabo, desviar-se do seu ensinamento e actuar como de Judas se tratasse ! Sei perfeitamente que o desejável, como bem comum, anda muito longe e as injustiças continuam por toda a parte e sem fim à vista ; todavia, se tivesses nascido mais tarde, provavelmente, não precisavas de grande cunha/promessa para estudar tão longe de casa, apesar de ainda termos mentes iluminadas que, frequentemente, reclamam tal passado como positivo e admirável ! Um abraço .

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  3. Bom, gostei muito de ler e por mim pode continuar com este tipo de narrativa. Apaixona-me a vida desses anos que eu vivi e verificar quão diferente era a vida numas localidades e em outras.
    Abraço e bom domingo

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  4. Por essa altura Colégios Internos dirigidos por religiosos havia bastantes… Que venha o próximo capítulo.

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