Assim como há anos marcantes na minha vida, também há meses que não me saem da memória. Maio é um desses meses. Passo a explicar.
1959 - Expulsão do Colégio:
Durante todo o 4º Ano, fiz tropelias do arco da velha, pois queria provocar aquilo que acabou por acontecer. Eu queria sair, mas sabia que os meus pais nunca concordariam com a ideia e foi esse o caminho que encontrei para me desenrascar do problema. Hoje teria pensado melhor, pois estaria em muito melhor posição se tivesse completado o 5º Ano naquela escola que foi a melhor de todas que eu conheci.
O Reitor do Colégio chamou-me ao seu gabinete e disse-me com as melhores palavras que encontrou que tinha chegado à conclusão que eu não tinha vocação para a vida religiosa - encontrar e confirmar vocações para a vida de jesuíta era a missão daquele colégio - e, portanto, não valia a pena continuar a insistir comigo e fazer-me a vida negra. Disse-me também que, embora ainda faltasse um mês e picos para o fim do ano, me daria o certificado para me poder matricular no 5º Ano, em qualquer outra unidade de ensino.
Digamos que não foi mau de todo e, por dentro, eu ia rejubilando, enquanto ele falava, pois o meu plano tinha funcionado às mil maravilhas, estava livre. Nesse ano, as minhas «Férias Grandes» foram grandes mesmo, de meados de Maio até ao início de Outubro. Como poderia eu esquecer.me disto!
1968 - Expulsão da Marinha:
Durante o primeiro trimestre deste ano, estava eu na Estação Radionaval da Machava, à espera de outra Companhia que nos fosse render para podermos entregar a pasta (que acabou por ser a CF2, na sua segunda comissão) e regressar à Metrópole. O Segundo Comandante tinha-me um pó desgraçado e só esperava a melhor oportunidade para me "fazer a folha". Desde a minha viagem, a bordo do Niassa, a caminho de Moçambique que ele ficara de olho em mim, por causa de uma greve que fizemos e de que ele me considerara responsável. Nessa passei sem castigo. Depois, fizemos uma nova greve, logo no início da comissão, por ele querer impor-nos uma espécie de «regime escolar», quando deveria ser um «regime de guarnição», coisas muito diferentes na Marinha. E aí não me safei de os meus primeiros 5 dias de detenção, mas ele não conseguiu provar quem tinha despoletado a greve (eu mesmo) e estendeu o castigo a todos os graduados da Companhia. Com isso estragou a vidinha a muita gente, alguns dos quais lhe serviram de ajudar para me lixar mais tarde.
Durante o ano de 1966, vi-me embrulhado numa confusão com a Polícia Militar, em Lourenço Marques, acabei por levar um tiro que, por sorte, só me atingiu no braço direito e fui parar ao hospital. Aí ele ficou convencido que chegara a oportunidade de se ver livre de mim, recambiando-me para a Metrópole com destino ao Presídio de Santarém. Mas eu andei mais fino que ele, arranjei uns amigos que tinham alguma influência sobre o 2º Comandante do Comando Naval, e o processo desapareceu sem deixar rasto. Escapei de novo por uma unha negra.
Voltando a esse mês de Janeiro, em que esperávamos a chegada da CF2, não havia nada que fazer, além das guardas e serviço de rotina que não me pesava muito, visto ter nas platinas as divisas de marinheiro. Um grupinho de camaradas entretinha-se contando anedotas e rindo-se a bandeiras despregadas cada vez que a situação o permitia. Um dos meus camaradas mais antigos, recentemente promovido a Cabo, passou ao nosso lado no momento em que rebentou uma estrepitosa garalhada. Mais tarde, veio ter comigo e perguntou-me o que eu tinha dito dele para toda a gente se rir daquela maneira. Respondi-lhe que nada, pois não era ele o motivo das nossas graçolas (o que era a mais pura verdade). Mas ele ficou a magicar naquilo e no dia seguinte veio dizer-me que ia fazer queixa ao Comandante. E assim foi.
O Segundo Comandante encarregou de levantar o auto, correr todo o processo, ouvindo uma catrefada de testemunhas e a mim, no fim de tudo. Foi aí que soube que estava a ser acusado de levantar falsos testemunhos, insinuando que o tal Cabo era homosexual. Caí de queixos quando ouvi uma estupidez daquelas e do modo mais inesperado que se possa imaginar. Sim, disse o comandante, olhando-me fixamente, você chamou isso ao seu camarada, tenho testemunhas que o afirmam e isso é um crime grave.
Grande mentira, isso sim, mas ele tinha ali naquela papelada que folheara em frente aos meus olhos declarações de vários camaradas, a quem ele, de um modo ou de outro, tinha subjugado à sua vontade e que me valeram 15 dias de prisão disciplinar agravada e ter ficado incurso no Artigo 62, aquele que diz que não se pode ser promovido nem reconduzido. Cheguei a Lisboa, em meados de Março e em meados de Maio já estava em casa e sem farda. Viva a Marinha!
2003 - Expulsão da empresa a que dediquei mais de metade da minha vida:
Esta foi a que me doeu mais, pois veio disfarçada de um pequeno favor que pensaram estar a fazer-me. Desde o dia 2 de Agosto de 1971 até 2 de Maio de 2003, foi sempre a dar-lhe, aquilo era uma fábrica de confecções, mas mais parecia uma fábrica de fazer dinheiro. Juntei-me a ela quando tinha apenas 220 trabalhadores e trabalhavam e ganhavam lá o pão nosso de cada dia cerca de 2.700 pessoas no dia em que me vim embora. Os fornecedores que dependiam dela para sobreviver até lhe chamavam «A Nossa Senhora de Vila do Conde».
No primeiro ano em que lá trabalhei foi só ganhar dinheiro, no segundo foi só gastá-lo. Alargámos a fábrica para o triplo da tamanho, em área e número de trabalhadores, durante o período de férias de 1972. No ano seguinte, já em velocidade de cruzeiro, chegamos a facturar 17.000 calças de homem e rapaz por dia. Os clientes principais eram os grandes importadores ingleses e empresas que vendiam roupa por catálogo. A qualidade não era o mais importante, o que contava é que as fotografias fossem apelativas. No verão de 1973, aconteceu uma coisa que quase deitava por terra o meu futuro naquela empresa. O director geral que fora quem me contratara foi forçado a sair para dar o lugar ao filho do patrão, recentemente saído da universidade. Por uma ou outra razão que não vem aqui ao caso, o novo chefão não engraçou muito com a minha cara e comecei a andar de Herodes para Pilatos, dentro da empresa. Eu fazia Planeamento, Compras e Gestão de Stocks. No segundo ano da sua chefia tirou-me o Planeamento. e fiquei com as outras duas tarefas. Depois aconteceu o 25 de Abril e as coisas andaram tão tremidas que quase fomos à falência. Durante o governo de Vasco Gonçalves, os países da Europa fizeram-nos um certo boicote e só nos salvou a influência da casa-mãe que era pertença do governo holandês, em grande maioria.
Nos dois anos seguintes, de 1975 a 1977, foi remar contra a maré, evitando todos os obstáculos que se apresentavam pela proa, fazer uma vida apertadinha e com crédito bancário que nos deixava à beira de um ataque de nervos. No verão de 1977, o Big Boss da empresa mãe, na Holanda, teve que reformar e foi escolhido o seu filho (meu chefe, à data) para lhe suceder no cargo. Foi aí que houve necessidade de escolher um novo director para a nossa empresa e aconteceu recair a escolha num português, pela primeira vez, e que ainda por cima era um meu amigo do mundo dos negócios.
Com a entrada dele atingimos o fundo do poço, em termos económicos, mas depois foi sempre a subir até chegarmos ao primeiro lugar como exportadores de têxteis, em Portugal, realizar uma facturação na ordem dos dois milhões de contos por mês e o mesmo valor de lucros brutos anuais. Tudo rolava sobre esferas e a minha vida tornou-se fácil, embora muito trabalhosa. Trabalhei muitas vezes durante 12 horas por dia, trabalhei sábados e domingos, abdiquei das minhas férias anuais, todas ou em parte, mas também fui principescamente recompensado. Quando abandonei a luta, já auferia um salário de 6.500€, maior que o do Primeiro Ministro (sem as alcavalas, está claro).
Mas a Indústria Têxtil Portuguesa estava condenada a desaparecer e nada podíamos fazer para o evitar. O Acordo Multi-Fibras que vigorou até ao ano 2000 foi-nos protegendo, proibindo, ou limitando, as importações do Extremo-Oriente, mas um dia teria que acabar. A partir de 1995, os nossos lucros foram-se reduzindo para metade a cada ano que passava e no fim do ano 2000 estavam, praticamente, no zero. Tivemos que fazer uma série de truques nas contas para não apresentar um saldo negativo e desagradar aos bancos. A vida tornou-se muito mais difícil a partir daí em diante.
Tinha saído uma lei que permitia a reforma antecipada, aos 55 anos (que eu completara em Março de 1999) e comecei a pensar se não seria melhor aproveitar, antes que essa lei fosse revogada. Por cada 3 anos de descontos para a Segurança Social subia um na minha idade e eu precisava de mais 2 anos para não ser muito penalizado. Fui aguentando, como pude, com chefes a entrar e a sair a cada passo (a empresa, entretanto, já tinha sido vendida duas vezes, a última delas ao meu chefe) e a situação a piorar de dia para dia. Depois do meu aniversário de 2002, pus-me a caminho de Lisboa, fui à Marinha buscar o documento da contagem do tempo e entreguei-o na Segurança Social com o pedido da Reforma.
Logo que recebi a confirmação do meu pedido, abordei o meu chefe de serviço (entretanto o nosso antigo director fora promovido a patrão e afastara-se de mim um bom pedaço), comuniquei-lhe o que acabara de fazer e ofereci-me para continuar a trabalhar, desempenhando todos os meus cargos sem problema. Ele aceitou, todo contente, pois não saberia o que fazer sem a minha presença e a influência que eu exercia sobre a estrutura total da empresa.
No Natal desse ano, rebentou uma borrasca que deu um abanão enorme na nossa casa, uma espécie de tsunami que abreviaria o fim da mesma. Os sócios, 5 portugueses e um holandês, zangaram-se e decidiram que uma das partes tinha que abandonar a empresa. O meu antigo chefe detinha 55% do capital e todos os outros os restantes 45%. Encostou-os à parede e disse-lhes que ou saíam eles e receberiam a sua parte, a um preço que ele estipulou, ou sairia ele e teriam que lhe pagar a mesma coisa..
Foi o fim da macacada, eles não tinham dinheiro para o fazer, mas foram à banca, garantiram um empréstimo e afrontaram o antigo chefe, dizendo-lhe que estavam compradores, vender, nunca. E assim aconteceu, 24 anos e uns meses depois de ter entrado, ele saiu levando 3,5 milhões de contos no bolso e, depois de uma falência vergonhosa, ao fim de poucos anos, foram os outros com as mãos a abanar.
A nova chefia era um pandemónio, ninguém sabia muito bem como enfrentar os problemas, nem confiavam em ninguém. Para eles, a começar por mim, todos éramos uns sabotadores que não deixavam a empresa singrar. O trabalho era cada vez menos e as linhas de produção começaram a ter horas mortas em que nada havia para fazer e redundava num prejuízo enorme. O fim estava à vista e eu falei com o meu chefe, dizendo-lhe que ia começar a trabalhar apenas de manhã e de tarde ficaria em casa, de modo a habituar o pessoal a viver sem a minha liderança. Aceitou sem problemas e acredito que o tema foi assunto na reunião de direcção que se seguiu uns dias depois.
Na segunda-feira, a seguir ao primeiro de Maio, apresentei-me ao trabalho, depois do almoço (às segundas invertia o horário, trabalhando só de tarde, para estar presente numa reunião que acontecia nesse dia) e avisaram-me que o director geral tinha estado ali à minha procura, durante a manhã. Fui ter com ele, perguntando-lhe o que me queria e ele disse-me, seco e rápido:
- Amanhã, pode ficar em casa, de manhã e de tarde, que nós cá nos amanharemos. Se precisar de si, eu mando-o chamar.
Até hoje, ainda estou à espera!