domingo, 5 de novembro de 2017

Memórias e ... etc. !

Uma notícia difundida, ontem, pela televisão, dando conta da visita surpresa do nosso presidente da república ao Hospital S. Francisco Xavier, remeteu-me, de novo, para a minha vida como grumete fuzileiro da Marinha de Guerra Portuguesa. O homem não pára quieto e aparece em todo o lado, por vezes de surpresa, pondo em pânico aqueles que têm medo de ser apanhados em falta.
Durante o tempo de permanência na Armada, eu fiz centenas de serviços. Comecei com os de «Plantão», na Escola de Fuzileiros, ainda nos tempos da recruta, passei pelos de sentinela, na Escola e no Corpo de Marinheiros do Alfeite, e acabei a fazer serviço de guarda, dia sim dia não, em Moçambique, enquanto durou a comissão na Companhia 2.
Fazer o serviço não tinha nada de complicado, o que nos complicava a vida era a fiscalização permanente, e muitas vezes mal intencionada, dos nossos superiores que, a exemplo do que fez ontem o Professor Marcelo, apareciam de surpresa tentando apanhar-nos em falta. Parecia dar-lhes um prazer "orgásmico" meter-nos no «Livro» e ver-nos apanhar um castigo que em nada os beneficiava.
O meu primeiro serviço foi «Plantão às Casas de Banho» da Parada da Escola de Fuzileiros que ficavam quase em frente da porta do gabinete do Oficial de Serviço.


Corria o mês de Abril de 1962 e eu, enfiado numa farda de cotim cinzento, onde caberiam à-vontade dois como eu, afivelei o cinturão, de onde pendia o sabre de uma espingarda Mauser, e apresentei-me no posto de serviço que me tinha sido destinado. Eram 20.00 horas e a única autoridade que vi por perto foi o «Cabo de Quarto» que, eu já sabia, era o meu primeiro superior numa escala hierárquica, o qual dependia de um sargento e este de um oficial, que estariam de serviço até às 08.00 horas do dia seguinte.
Estar de serviço era uma forma de falar, pois a seguir à rendição da meia-noite iam todos para a caminha e até perto das 07.00 horas da manhã ninguém lhes punha a vista em cima. Mas havia sempre o risco de algum deles sofrer de sonambulismo e apanhar o plantão ou a sentinela a fazer o que não devia. Portanto, o meu primeiro serviço foi, basicamente, manter a porta do gabinete sob vigilância para não ser apanhado "a dormir".


O meu primeiro serviço de sentinela foi já depois de ter jurado bandeira e saber manejar a Mauser, naquela guarita que ficava ao lado da estrada Coina/Palhais, a cerca de 500 metros da Casa da Guarda, num sítio mais elevado, em relação ao pavimento da estrada. Era já perto da meia noite e eu mortinho por ser rendido e ir fechar as pestanas, vi a chama de um cigarro a brilhar, a cerca de 20 ou 30 metros da guarita onde me escondia. Fiquei atento a ver quem seria e o que faria ali àquela hora. Terrorista não era com certeza que eu ainda não tinha chegado à África.
A chama do cigarro apagou-se (desapareceu), passaram ainda alguns minutos, e de repente, como se tivesse surgido do nada, apareceu-me a figura gigantesca do Sargento Trindade que era o Sargento de Quarto nessa noite, a poucos metros de mim.
- Tu também fumas, perguntou ele?
- Às vezes, respondi eu, cagado de medo do que viria a seguir.
- Viste a chama do meu cigarro?
- Vi.
- Sabes o que te acontecia se fosses tu o fumador?
- Ia para o Livro.
- Não, seu estúpido, levavas um tiro no meio dos olhos e ias para os anjinhos. Não te esqueças disso, daqui a uns meses, quando estiveres em África.
E depois disto desandou e desapareceu no escuro da noite. Nunca mais me esqueci dessa lição e cada vez que acendia um cigarro, para ajudar a passar as infindáveis horas de sentinela que fiz, em Moçambique, escondia-me o mais que podia para não correr riscos.
As centenas de serviços que fiz, em Moçambique, primeiro na Machava e Loureno Marques e, mais tarde, no Niassa dariam para contar um cento de histórias e preencheriam com facilidade as páginas de um livro de tamanho médio, mas não vou meter-me nisso. Limito-me a despejar aqui, neste blog que é uma espécie de «Diário Inconfidencial», algumas linhas, cada vez que alguém me puxa pela corda.
Quanto à visita-surpresa que o Presidente da República fez ao hospital - não sei se sim ou não para apanhar alguém em contra-pé - foi motivada pelo novo surto de legionella, uma bactéria que teima em fazer-nos uma visita de vez em quando. Vejam aqui abaixo o que se diz sobre ela.

«Legionella pneumophila é uma bactéria ubiquitária e saprófita da água, não fermentadora de lactose, sendo nutricionalmente exigente. É oxidase positiva, catalase positiva e hidrolisa o hipurato. É um patógeno intracelular facultativo, apresenta um sistema de secreção tipo IV. Com este sistema de secreção, a bactéria é capaz de "Invadir" a célula hospedeiro, através da transferência de DNA pelo método de conjugação.»

6 comentários:

  1. É a legionella é lixada.Há uns quinze anos o meu marido esteve muito mal e os médicos suspeitaram da legionella, mas os exames demonstraram que não era. Ainda assim ele esteve muito perto da partida. Graças a Deus ainda não tinha chegado a hora dele.
    As histórias da tropa davam romances se alguém se dispusesse a contá-las. Quando o maisquetudo estava na escola de Fuzileiros, saía muitas vezes de "salto" para vir ter comigo. De regresso ia a pé ou à boleia, quando tinha sorte de a arranjar. Uma altura pediu uma boleia a um tipo que depois de alguma conversa, parou o carro e o deixou logo a seguir à seca do Bacalhau, dizendo-lhe:
    A partir daqui desenrasca-te. Se eu te levar mais além vais direto para a prisão. Parece que não me conheces. Eu sou o Sarmento Coelho.
    E foi-se embora deixando-o todo "acagaçado" pois já tinha ouvido o nome e sabia que se tratava de um capitão de mar-e-guerra. Três anos mais tarde, era este mesmo oficial, comandante do décimo destacamento no Lungué-Bungo onde o mais-que-tudo estava a preparar-se para o casamento que se realizaria quando voltasse. Mas como não era batizado, resolveu batizar-se lá e o comandante ofereceu-se para padrinho.
    Acredita que eu nunca conheci este senhor? O meu marido nunca quis ter nenhum contato com ele para não dizerem que queria alguma cunha.
    E nunca mais o viu desde que em 96 deixou a marinha.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  2. Acontecimentos do passado, por quem os viveu, estão sendo recordados no presente. O presidente dos afectos atarefado. Preparando a cama para nela se deitar, durante, mais um mandato. A ver vamos se cá estivermos se será tão activo como tem sido. Vai a todas não faz mais do que o seu dever. Para isso foi eleito Presidente da República!

    ResponderEliminar
  3. Grande lição essa do cigarro! Um dia já depois de ter chegado de Moçambique estava de cabo da guarda em Belém, fui fazer a ronda como era minha obrigação e encontrei o sentinela no 1º sono, a G3 veio comigo, mas não fiz nenhuma participação e andei muito tempo com receio de ser eu o apanhado por não ter participado uma situação tão grave.

    ResponderEliminar
  4. Este Filho da Escola é uma espécie de repórter da meia-noite, está sempre em cima do acontecimento ! Actualmente, graças à evolução da ciência, todas as doenças estão baptizadas, excepto as que ainda não encontraram padrinho . De facto, o surto de Legionella em foco não constitui nada de muito estranho, é uma doença conhecida e que exige tratamento adequado e imediato, a fim de se evitar eventual perda de vida . Para além desta, outras de enorme gravidade levam aos nossos hospitais centenas de pessoas e a que se não dá tanta publicidade ! Sou admirador do Senhor Presidente da República, considero-o muito competente e honesto, assim como dotado de enorme sensibilidade humana ; todavia, em minha opinião, parece-me que exagera em alguns aspectos e esquece-se que, por vezes, apenas vai atrapalhar, sem que contribua para algo concreto e útil, mas sim fazer perder tempo a quem deve estar empenhado naquilo que eventualmente se torne indispensável . Deslocar-se a um hospital ou a outro lugar qualquer, só porque na comunicação social se anuncia determinada anomalia e que faz parte do que pode surgir com mais ou menos frequência e risco, não me parece razoável ou justificável para quem exerce um cargo desta natureza ! Na realidade, quando se vulgarizam determinados actos, contribui-se para certa indiferença e perda da sua importância . Quanto às memórias do meu caro SILVA, atrás descritas, não podem deixar de fazer parte do meu mundo de recordações, dado que tive sina idêntica e trilhei muitos dos seus caminhos . Também, acerca da sua conversa com o Sargento Trindade, tive que me rir, face a perguntas e respostas ; pois, para quem conheceu este Sargento, não tem dúvidas sobre a sua frontalidade e, porque não dizê-lo, homem de elevado carácter . Um abraço .

    ResponderEliminar
  5. Em termos militares nunca existiu "fiscalização". Existiu sim,o controlo da ORDEM E DISCIPLINA,mandada às urtigas pós-25A,e resultando em tropa fandanga !!!

    ResponderEliminar
  6. O detalhe é impressionante... Há aqui bagagem para escrever um best-seller.

    ResponderEliminar