Há quem queira comprar um cantinho do céu para lá viver a sua nova vida, depois de dizer adeus a esta. E os interessados vão investindo, ao longo da vida e sempre que a oportunidade se oferece, para garantir que esse seu desejo se realiza. Uns apelam à ajuda dos santos ou a Nossa Senhora - uma qualquer das muitas que temos à escolha - outros fazem promessas ou vão em romaria a Fátima.
Foi por uma dessas circunstâncias que eu me tornei aluno interno do colégio dos Jesuítas. Uma lavradeira abastada, minha conterrânea, tinha um filho padre e mulher que dê um filho padre tem meio caminho andado para ganhar o céu. O outro meio que lhe falta tem que ganhá-lo à custa de outros méritos, esmolas ou favores feitos aos seus irmãos em Cristo.
A tal lavradeira, mãe do padre Zé, prometeu pagar os estudos a dois rapazes da freguesia que quisessem seguir o caminho do seu filho. Falou com o seu confessor, o Sr. Padre M.M.M. (não escrevo o nome por extenso, pois não sei onde este escrito pode ir parar e não quero o nome do santo homem a tornar-se pasto da má-língua. As 3 iniciais do seu nome e apelidos eram todas iguais) e pediu-lhe ajuda para cumprir a promessa que fizera.
Estávamos em finais de Junho, eu tinha acabado de fazer o exame da 4ª Classe e tinha à minha frente um futuro tão desconhecido como era o oceano profundo, antes de os valentes marinheiros portugueses se aventurarem na epopeia dos Descobrimentos. A rapaziada da minha aldeia dividia-se em dois grupos distintos, os filhos dos lavradores que estavam condenados a seguir o destino dos seus pais e os filhos dos pobres que se tornavam jornaleiros, servindo os do primeiro grupo, ou iam aprender uma arte, como pedreiro, trolha, carpinteiro ou ferreiro. Estas eram as profissões que suportavam a vida dos aldeãos e outras não havia, nem se julgavam necessárias.
Era uma tarde soalheira, daquelas que convidam a uma passeata por baixo das ramadas de videiras e seguida de um mergulho na ribeira que atravessava a freguesia - no verão a água só chegava ao joelho, nas partes mais fundas, o resto era um fio de água que mal dava para tocar o moinho que moía o grão para a avó cozer o pão - mas, lá diz o ditado, o homem põe e Deus dispõe. Em vez do passeio e do mergulho refrescante, tive que aturar o Sr. Padre (o dos 3 M) que entrou pela nossa porta adentro, dizendo que queria falar comigo e com a minha santa mãe. Chamo-lhe santa, porque para parir 12 filhos e aturá-los uma vida inteira, nem todos eram uns santos e deram muito trabalho, tem que estar no céu, a esta hora que me dedico a escrever estas memórias.
As memórias servem para os mais velhos deixarem, por escrito, as suas experiências de vida, as suas conquistas, assim como os seus falhanços, antes que chegue o Dr. Alzheimer e nos apague grande parte do que guardamos no nosso armazém da memória. Talvez os filhos e os netos aproveitem alguma coisa de positivo, entre as muitas palavras que a gente despeja sobre o papel. Aqui, em sentido figurado, pois o que escrevo só fica guardado nos E.U. da América, nos servidores da Google.
E o Sr, Abade - era assim que o chamávamos lá na nossa aldeia - começou por dirigir-se à minha mãe perguntando: - Srª Rita, acha que o seu filho Manuel (disse-o olhando para mim) gostaria de ir estudar? Mas como, Sr. Abade, eu não tenho dinheiro para isso, sabe Deus para lhes garantir o pão-nosso de cada dia, respondeu-lhe a minha mãe! Isso não é problema, continuou ele, a Srª Fulana de Tal compromete-se a pagar as mensalidades do colégio e para fazer o enxoval sempre se arranjarão umas ajudas. Eu ouvia, mas nem sequer ousava levantar os olhos do chão, sempre era melhor ir estudar do que tomar contas das vacas e ovelhas de algum lavrador da aldeia. E comer o pão que o diabo amassou, costumava dizer a minha avó Maria que toda a sua vida fora jornaleira, na lavoura.
Palavra para cá, palavra para lá, a minha mãe prometeu falar com o marido, quando ele chegasse, no fim de semana, pois andava a trabalhar, lá para os lados de Guimarães e só passava o domingo em casa. Depois levo-lhe a resposta, quando for à missa, disse a minha mãe e assim ficou combinado, sem que eu, como parte interessada, tivesse dito uma palavra. Era assunto de adultos e um puto de 11 anos - já os tinha completado em Março - não mete prego nem estopa na conversa dos mais graúdos.
O meu pai, depois de a minha mãe lhe ter exposto o problema, perguntou-me se eu gostaria de ir estudar para um colégio, como interno, e ficar longe de casa o ano inteiro. Eu não conseguia, nessa altura, medir a extensão da minha resposta, mas disse que sim. Assim, meio entalado entre a espada e a parede, teria que decidir se queria tentar ser alguém na vida ou seguir o exemplo da maioria dos meus colegas de turma que, desde o dia do exame tinham começado a acompanhar os pais para o campo. Havia sempre pequenas tarefas que eles conseguiam cumprir sem problema algum e, lá diz o ditado, o trabalho de uma criança é pouco, mas quem o perde é louco!
Os meses de Julho, Agosto e Setembro foram de grande azáfama para a minha mãe. Começou por ir à feira de Barcelos comprar uma daquelas malas grandes, chamadas "malas de porão", arrumou-a num cantinho da sala e, aos poucos foi-a enchendo com os artigos que constavam de uma lista que o Sr. Abade lhe deu. Desde a roupa interior à exterior, dos lençóis às toalhas, das peúgas e sapatos, tudo foi arranjado, lavado e passado a ferro e metido na mala, à espera de a meter no comboio e seguir viagem até Coimbra. Toda a roupa que seria enviada para a lavandaria do colégio, lençóis, travesseiros e toalhas tinham que levar o meu número bordado (numa cor que não desbotasse).Foi escolhida a cor azul e o meu número, o primeiro que tive na minha vida, foi o 57 que as minhas irmãs iam bordando com todo o cuidado.
No dia combinado, não recordo o dia exacto mas sei que era a primeira semana de Outubro, apareceu o Sr. Abade com o táxi lá da aldeia - nesse tempo ainda a palavra táxi não existia, era um carro de aluguer - carregou a minha grande mala e mais uma pequenina, daquelas de cartão, onde levava meia dúzia de coisas que a minha mãe achou necessárias, entre elas duas sandes de marmelada para eu matar a fome pelo caminho, pois só Deus sabia a que horas me seria servida a primeira refeição daquele longínquo dia de Outubro de 1955.
A viagem do carro de aluguer, ás custas da minha tal benfeitora, tinha como destino a stação das Devesas, em Vila Nova de Gaia, onde o Sr. Abade me deixou, com a recomendação para sair do comboio na estação de Coimbra-B, onde me esperava um padre jesuíta que me conduziria ao colégio. Com medo que eu me esquecesse do nome da estação, ou adormecesse em serviço, o Sr. Abade ainda procurou o revisor do comboio pedindo-lhe para me deitar um olho e garantir que eu e a minha mala sairíamos do comboio na estação indicada. Ainda bem, pois sem ele não sei como me atreveria a mexer na mala que pesava muito mais que eu.
Uma curta viagem de menos de 10 Kms e lá estava eu, em frente a um grande edifício de 3 andares e no meio de um grupo de rapazes que nunca tinha visto na minha vida e com quem partilharia gostos e desgostos nos anos vindouros. Com a minha maleta na mão, a outra nunca mais a vira, desde que abandonara o comboio, sentia-me um emigrante à conquista de um lugar onde brilhasse o sol e não faltasse o pão e o mel. Foi isso que Jesus prometeu a quem o seguisse e eu estava nas mãos d'Ele.