Na minha publicação de ontem, falei de rios de montanha que têm características especiais devido ao terreno que percorrem ser muito acidentado. Nos países de clima tropical esses rios assumem ainda uma outra característica que é também marcante, são temporários. Como nesses países chove poucas vezes, mas com grande intensidade, formam-se rios, nas zonas montanhosas, que dois ou três dias depois já não existem. As enormes enxurradas que descem das montanhas arrastam terra e pedras formando um vale seco e pedregoso logo que a chuva deixe de cair.
A província do Niassa, em Moçambique, era fértil neste tipo de acontecimentos devido à morfologia do terreno. O lago Niassa fica a cerca de 600 metros acima do nível do mar e a costa moçambicana tem montanhas que chegam perto dos 1.500 metros de altitude. A água das chuvas escorre dessas montanhas até ao lago criando muitos desses pequenos rios que, ora vão desaguar em rios de maior dimensão, ora despejam a sua água, directamente, no lago. Estes últimos são os mais curtos e temporários que se podem encontrar. Um ou dois dias de sol inclemente e ficam completamente secos. Para isto concorre uma característica especial do clima tropical, só chove no verão.
Um desses pequenos rios separa Moçambique do Tanganica (era assim que se chamava quando por lá andei) num percurso que não deve atingir os 10 Kms. Nas operações que os fuzileiros levavam a cabo nessa zona - tentando localizar os turras que entravam por ali em Moçambique - usávamos esse rio para penetrar mais facilmente no terreno montanhoso, livre de vegetação e do malfadado "feijão macaco" era um caminho fácil de percorrer.
Naquele dia foi-nos dada a missão de partir dali em direcção a Olivença (hoje chamada Lupilichi) para ajudar um grupo do Exército que lá estava em dificuldades e com falta de munições. Como já era habitual, a lancha despejou-nos na praia, junto à foz desse rio, por volta da meia noite. Começámos a marcha já a chapinhar no rego de água que descia a caminho lago. Quanto mais caminhávamos mais chovia e mais subíamos em altitude. Pelas 7 da manhã chovia tanto e a água do rio tinha aumentado de tal maneira que nos foi impossível continuar. Andámos por ali, perdidos, ora do lado português ora do vizinho do norte, até ao sol-pôr.
Chegámos à triste conclusão que estávamos perdidos e tentámos comunicar com a base via rádio, mas estava escrito que tudo daria para o torto, do outro lado ninguém respondia. Ofereci-me para subir a uma árvore e colocar a antena do rádio no ponto mais alto que o cabo de antena permitia. Nem assim resultou. Sem saber onde estávamos era difícil tirar um azimute para seguir a caminho de Olivença.
Decidimos acampar para passar a noite e de manhã se decidiria o que fazer. Choveu toda a noite sem parar. Deitámo-nos enrolados no poncho impermeável, mas passado pouco tempo a água entrava pelo pescoço, percorria todo o corpo e parava dentro das botas de cano alto. De manhã, ainda cedo, uma réstia de sol aqueceu-nos a alma e fomos, mais uma vez, tentar a nossa sorte com o rádio, mas sem sucesso. Sem rações de combate para aguentar um dia inteiro no mato e sem saber muito bem onde estávamos, a decisão do oficial que nos comandava (um sub-tenente da Reserva Naval) foi regressar ao ponto de partida. Lá chegámos por volta do meio-dia e desse local conseguimos estabelecer contacto via rádio e pedir o nosso reembarque.
Chegámos à base a tempo de tomar a primeira refeição do dia, à hora do jantar. A má notícia é que teríamos que voltar a sair, à meia-noite, com novas informações de orientação para tentar chegar a Olivença e ajudar os nossos camaradas do Exército. A boa notícia é que antes de nascer o sol do novo dia recebemos ordem para regressar, porque um pelotão do Exército já lá tinha chegado e resolvido o problema. Ficámos aliviados por já não estarem em risco os rapazes "entalados" naquele fim do mundo, mas um pouco chateados por ter passado tantas dificuldades para nada. Na minha opinião, o oficial que nos comandava (e que era um pouco avariado dos cornos) deve ter ficado com um trama para a vida toda. Encontrei-o uma vez, no Barreiro, e contou-me que era professor de História e Filosofia. Talvez estes acontecimentos lhe servissem para dar uma boa aula na faculdade, com um pouco da História de Portugal e muita Filosofia pelo meio!
Dá gosto ler estes textos, em que nos envolvemos como se tivessemos vivido as mesmas experiências. Admiro muito a forma sucinta e clara como descreve momentos que o marcaram para sempre.
ResponderEliminarEu não tenho essa capacidade de sintese...falo, falo, falo, e fico sempre com a sensação de ter deixado muito, ou quase tudo, por dizer.
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É normal sermos nós os mais severos críticos daquilo que escrevemos. Eu também não dou um vintém por aquilo que escrevo, de outro modo já teria publicado meia dúzia de livros.
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