terça-feira, 10 de janeiro de 2023

O Marlon!

 Esta publicação deveria ser feita no Blog da CF2, mas como pouca gente passa por lá (e ainda menos comenta) vou fazer de conta que me enganei e não aceito críticas.

O 16581, de seu nome João Manuel Azevedo, era conhecido pelas alcunhas de NUNO ou MARLON. Marlon por ter uma ligeira parecença com o Marlon Brando, antes de este ter engordado uma brutalidade de Kilos. Do Nuno não sei a origem, nem ele me soube responder, quando lho perguntei, na última e única vez que estive com ele, desde Junho de 1965.

Fomos juntos para Moçambique, incorporados na Companhia de Fuzileiros Nº 2, num dia que não recordo do mês de Outubro de 1962 e vivemos grandes aventuras, durante os 30 meses que passámos naquela ex-colónia portuguesa. Até para Metangula, no Niassa, fomos juntos, quando a Frelimo desatou aos tiros, por aquelas bandas.

Quando, em 2008, decidi localizar todos os membros da Companhia e saber quem era vivo ou morto, deparei-me com o problema de ninguém saber dele, nem como desapareceu da Escola de Fuzileiros, no verão de 65. Houve até muito boa gente que o deu como morto, mas isso nunca me convenceu, pois são raros os casos em que o morto nunca mais aparece, Se tivesse morrido afogado no Tejo, como alguns aventavam, o seu cadáver apareceria a boiar em qualquer lado, mesmo que flutuasse até à Galiza.

Esta de ele flutuar até à Galiza saiu-me assim de repente, mas foi exactamente onde o fui encontrar, muitos anos depois. Cheio da Marinha até à ponta dos cabelos e acreditando que, logo que acabasse o curso em que ambos estávamos empenhados, ambos seríamos recambiados para África e, se o azar espreitasse, talvez para a Guiné, decidiu desertar. Percorrendo caminhos só dele conhecidos e com a ajuda de um irmão que trabalhava na Siderurgia Nacional - por onde ele também passara, antes de ingressar na Marinha, foi parar a uma aldeia do interior da Galiza.

Dado como desertor, situação militar que nunca prescreve, veio a Lisboa, depois do 25 de Abril, para regularizar a sua situação, uma vez que o governo português "socio-comunista" ofereceu essa possibilidade aos muitos jovens que tinha virado as costas a Portugal, por mor da Guerra Colonial. No entanto, contou-me ele, a confusão era tanta e as exigências de papelada tão difíceis de concretizar que regressou à Galiza sem nada ter feito e, como eterno desertor, lá continua a viver.

Quando lá chegou, nos idos de 1965, arranjou trabalho como simples operário numa fábrica de serração. Aos poucos foi ganhando a confiança do patrão, a tal ponto que, um belo dia, começou a namoriscar a sua única filha. E com ela se casou e formou a sua família. Ela era filha única e só teve uma filha também. A sua morte prematura deixou-o como herdeiro da serração, em que trabalhava, uma vez que o sogro também já tinha ido prestar contas a S. Pedro. A filha, entretanto, formara-se em Medicina e já trabalhava num hospital, em Vigo.

Viúvo e sem ninguém com quem se entreter nas horas vagas, arranjou uma amiga viúva e com ela e os seus descendentes - que o Nuno trata como seus verdadeiros netos - vive até à data. Que Deus lhe dê muita saúde e uma vida longa para disfrutar dessas benesses que a sorte lhe meteu pela porta dentro.

Ele era filho de mãe solteira - sabe Deus a carga negativa que isso carregava, nesses tempos de miséria - nascido numa aldeia na zona de Numão, perto de Fozcoa. Segundo me contaram, o seu pai era um empresário na área da Moagem e a sua mãe uma sua empregada. Ele passou os primeiros anos da sua vida trabalhando aqui e ali, primeiro para o seu pai e depois na agricultura, até que decidiu que aquilo não era futuro e seguiu os passos do seu irmão que tinha vindo para o Seixal e arranjado trabalho na Siderurgia do Champalimaud. E pouco depois, chegada a hora do Serviço Militar, concorreu à Marinha, onde nos encontrámos, em março de 62.

Ontem, na posse de um Smartphone com muitos minutos disponíveis, decidi marcar o seu número de telefone e ver se ele, ou alguém da família, me atenderia. Sempre tenho receio de ouvir uma má notícia, quando, ao fim de muitos anos de ausência, procuro por notícias de algum velho camarada. Mas a sorte estava comigo e ao fim de uns poucos toques ele atendeu e ouvi a sua voz. Ele que já nem português sabe falar, ao ouvir a minha voz reconheceu-me imediatamente. Devem ser tão poucas as ligações que tem com Portugal que eu serei um dos poucos a pensar nele neste início do ano em que ele festejará o seu 82º aniversário.

No próximo verão terão passado 13 anos sobre o nosso reencontro, em Monforte de Lemos e muita água passou já por baixo das pontes que atravessam o rio que passa por esta cidade galega, mas o NUNO está bem de saúde e ainda reconheceu a minha voz, vinda dum passado longínquo. Deixei-lhe um grande abraço e os votos de Bom Ano Novo. Terei que lembrar-me de lhe ligar de novo, no fim deste ano para reiterar os votos. E de mim, quem se lembra?


3 comentários:

  1. Gostei imenso de ler o percurso de vida do seu amigo João NUNO MARLON. Melhor descrito não poderia estar.
    Quanto à pergunta que faz, também a faço eu muitas vezes a mim mesma, mas não espero respostas.
    Voltando a si, e à sua pergunta, acho que se lembrou o seu amigo e companheiro, o Eduardo - Alentejano.
    Quando falar com ele diga-lhe que estimo as suas melhoras.
    Fomos seguidores um do outro, depois, não sei porquê nem como, perdi-lhe o rasto.
    Fique bem!

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  2. Gostei de saber que o nosso camarada Marlon ainda nos faz companhia. Uma boa descrição da sua vida que desconhecia. Tive boas relações com ele na Companhia 2 de Fuzileiros e, curiosamente, quando passei à disponibilidade no Alfeito em Janeiro de 1966, o nome dele veio surge numa troca de galhardetes entre o Chefe de Serviço de Pessoal da Armada e o Comandante da Companhia nº 9 de Fuzileiros que estava de partida para a Guiné, alegando este que lhe faltavam uns tantos elementos que não conseguia localizar, onde eu estava incluído. Foi quando o Capitão Tenente Chefe de serviços puxa duma lista de desertores onde estava o nome dele e outros que tinham passado à disponibilidade, que era o meucaso, pois estava a fazer o espólio e receber guia de marcha. Um abraço.

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  3. Lá tive que ler de novo a história do Marlon... Apenas mais uma de tantas dos nossos Marlon's espalhados pelo mundo.

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