Estação de comboios de Lourenço Marques
Estou quase a atingir o meu octogésimo aniversário e isso faz-me recuar até ao dia em que fiz 20 anos, no já longínquo ano de 1964, altura em que vivia na capital de Moçambique, actual cidado de Maputo.
Havia um grupo de professoras da cidade do Cabo que vinha todos os anos passar férias a Lourenço Marques. Era por altura do Natal, já não recordo se um pouco antes ou um pouco depois. Por questões de economia ficavam no parque de campismo do Miramar, do outro lado da estrada da praia do Miramar, a mais frequentada da capital.
Os 150 fuzileiros que formavam a minha Companhia eram, maioritariamente, solteiros e andavam sempre à caça de sexo como hienas esfaimadas. Ora um grupinho de jovens professoras, cuja idade pouco passava dos 20 anos, era um apelo irrecusável para essa juventude marinheira em que eu me incluía. E eu tinha o privilégio de ser o único que entendia um pouco a Língua de Shakespeare, portanto sempre na linha da frente para o engate. Servia de tradutor entre eles e elas e acabei por ficar de namoro com a chefe do grupo, de seu nome Isabel (assim mesmo, à portuguesa).
As férias duravam cerca de 10 dias que se passaram entre beijos e abraços, apalpões e amassos e foi uma tristeza, quando as tivemos que acompanhar até à estação dos caminhos de Ferro de Moçambique, dar um último beijo e dizer Bye-Bye until next time. Corria o ano de 64, aquele em que a Frelimo ganhou coragem para dar os primeiros tiros, em Moçambique, e iniciar uma guerra que durou até 1975, ano da independência daquela colónia portuguesa da África Oriental. Guerra em que participei, desde o primeiro dia, pois fui enviado para o Niassa, em meados do mês de Setembro.
Mas antes disso, por alturas da Páscoa desse ano, recebi uma carta da Isabel em que me comunicava que estaria em Lourenço Marques, no dia do meu aniversário, e tinha uma coisa importante para mim. Fiquei logo a pensar nalguma prenda escolhida com muito amor para alegar o dia em que eu faria 20 aninhos, só ficava a faltar um para ser maior de idade e tornar-me um cidadão totalmente responsável pelos meus actos.
Ela ficou hospedada numa residencial, no centro da cidade e no primeiro dia que estive livre de serviço na minha unidade, combinei com ela um programa romântico, com direito a um pezinho de dança no melhor dancing da Rua Araújo, de onde saímos já depois da meia noite. Os horários não eram como agora, que se iniciam por volta da meia noite e duram até de manhã. Os dancings, como era o Pinguim, abriam às 22.00 horas, antes disso funcionava como um Bar, e encerravam às 02.00, com a polícia a controlar. Nos últimos anos, com milhares de militares na cidade, a polícia militar era a mais rigorosa, na medida em que quase ninguém tinha licença para andar na rua depois da meia noite.
Eu e a Isabelinha, caminhámos pela rua, na direcção sul, até chegar à Praça 7 de Março, onde escolhemos um banquinho e nos sentamos a namorar. Ela já tinha tentado iniciar uma conversa comigo, enquanto estivemos no Pinguim, mas com o barulho da música não conseguimos entender-nos. Agora, ali naquele banco de jardim e no silêncio duma noite já outonal, ela fitou-me com uma cara de meter respeito e disse: - Estou grávida!
Pensei logo, com o cérebro a funcionar à velocidade da luz, que esse filho ia ser um grande problema para mim, mas também para ela, pois se vivia ainda na era do Apartheid e filhos gerados entre amantes que ocupavam lados opostos da barreira criada e mantida do modo mais duro pelos ingleses podiam levar a mãe à prisão. I came her to fight a war ando not to become a father (eu vim para aqui lutar numa guerra e não para ser pai), disse-lhe eu assim de repente, como início de conversa.
Então devias ter tido mais cuidado, pois quando se mantêm relações íntimas como nós tivemos, durante as férias de Natal, tudo pode acontecer, respondeu-me ela. E da maneira franca como tu te comportavas, eu sempre pensei que estavas protegida, que tomavas a pílula, ou coisa assim, atirei-lhe eu.
Bem, o resto daquelas curtas férias não foi nada animado e em menos de nada ia ela de regresso a Cape Town sem termos avançado mais um passo naquela conversa. Fui levá-la à estação, mais uma vez e despedimo-nos com aquela sensação de que tudo o que fora bom se tinha tornado num problema que nem era bom lembrar.
Passou mais de um mês sem receber carta dela e comecei a pensar que ela ficara muito zangada comigo e não me escreveria mais. Mas a vida que germinara no seu útero e continuava a crescer a cada dia que passava, levou-me a tomar a iniciativa e escrever-lhe perguntando como ia a gravidez. A resposta que me enviou, alguns dias mais tarde, deixou-me de cara à banda. Tive um aborto espontâneo, dizia a sua missiva, não tens que preocupar-te mais com isso!
Escusado será dizer que nunca soube, não tive meio de confirmar, se aquilo era verdade ou pura invenção dela, quanto à gravidez que me comunicou, naquele banco de jardim, em que me fui sentar algumas vezes, depois de tudo isto ter acontecido, a magicar nessa história. Teria mesmo tido um aborto espontâneo? Ou provocara-o com medo das consequências? Ou talvez nunca tivesse estado grávida e dissera-me aquilo para medir o tamanho dos meus sentimentos por ela.
Na verdade, eu nunca pensara que o nosso romance de férias pudesse ter um futuro. Ela tinha 5 anos a mais que eu. Eu tinha a guerra pela frente ou um regresso à Metrópole, a curto prazo, que futuro podia eu prever com ela? Na África do Sul, nem pensar, eu era branquinho da Silva e ela uma mulata que morava do lado de lá da barreira do Apartheid e tinha a sua vida organizada, além de um emprego garantido. Duas ou três cartas depois, eu parti para o norte, dar luta à Frelimo, de onde regressei no fim do mês de Janeiro de 65.
No regresso a Lisboa, o Infante D. Henrique, navio que me trouxe de volta, fez escala na Cidade do Cabo e eu, acompanhado por 3 ou 4 amigos , fui a casa dela, almoçámos todos juntos, passámos a tarde namoriscando e ela veio depois acompanhar-me ao cais. Sempre às escondidas da polícia, não fosse o diabo tecê-las. E dissemos adeus sem quaisquer esperanças de nos voltarmos a ver.
Entretanto, terminado o curso que me garantiu as divisas de marinheiro e o ingresso no quadro permanente de fuzileiros da Marinha de Guerra Portuguesa, um grande amigo que tinha decidido regressar a Moçambique, logo que isso se tornasse possível, convenceu-me a acompanhá-lo e antes do fim do mês de Outubro desse ano, já estávamos de novo no "nosso cantinho muito amado".
Voltei a ver a Isabel, em Dezembro, no Camping do Miramar, mas caíram-me os olhos numa colega dela que vinha a Moçambique pela primeira vez e montei-a na minha mota e fomos namorar para longe da Isabel, por causa dos ciúmes. Sei que houve grande zanga entre elas e o bate-boca deve ter sido de assustar, mas isso só empurrou a Verónica, assim se chamava o meu novo amor, mais para mim. Mas ela não voltou a Moçambique, enquanto estive na capital e eu segui para o norte, de novo, por conseguinte nunca mais a vi.
Em Dezembro de 67 voltei a encontrar a Isabel que, com o habitual grupinho de colegas e amigas, ocupava um apartamento, na baixa de Lourenço Marques, que tinham alugado por uma quinzena. Ela puxou por mim e revivemos tudo aquilo que se tinha passado, nos finais de 63. Eu ainda lhe perguntei, entre muitos beijos e abraços: - tu queres ficar grávida outra vez? Por amor de Deus, não, disse ela! E foi a última vez que a vi, pouco tempo depois já estava na Escola de Fuzileiros, em Palhais.