Pois é, eu devia falar do Camões, mas deixo-vos apenas esta quadra que atesta as minhas capacidades poéticas e vou falar-vos de costura, uma arte que deu o pão a ganhar a muitas mulheres num passado remoto e que foi destronada pelas confecções e o pronto-a-vestir.
E quem fala em costura fala em costureiras que, tal como a Eva, saíram da costela de um homem, são tortas e duras de roer. Isto disse um brasileiro e as suas palavras caíram debaixo dos meus olhos que li e fui obrigado a concordar com elas. Deus podia ter escolhido outro osso qualquer, ao escolher a costela deve ter tido as suas razões, embora eu acredite que foi apenas por termos muitas e uma não faria falta para equilibrar o esqueleto.
Depois de umas quantas voltas pelo mundo, eu próprio acabei por me juntar ao mundo da costura e das costureiras e por lá fiquei por um longo período da minha vida, o que prova que me dei bem com a companhia, senão teria desertado e rumado a outras paragens.
Mas a minha história - a que hoje escolhi para vos alegrar a vida - começou, em Moçambique, no mesmo mês em que me tornei maior de idade, aos 21 anos que antigamente, aos 18 ainda não éramos considerados gente de juízo perfeito. Mas, no entanto, e mesmo sem o juízo todo, eu já tinha corrido Moçambique inteiro, de G3 em punho, procurando manter os turras da Frelimo na ordem.
Desculpem-me lá, já ia a descarrilar, a história é de saias e de costura e nada tem a ver com guerras, com turras e também não mete armas. A não ser as que as mulheres usam para nos dar volta à cabeça. E é por aí que mergulho de novo nas minhas recordações do passado e me vejo a empacotar todos os meus pertences para embarcar rumo a Lisboa. Depois foi uma viagem maravilhosa, a bordo de um paquete de luxo, que não paro para vos descrever senão tornaria isto uma leitura longa e cansativa. Digo cansativa, porque muitas vezes o que para nós foi um delírio total aos outros pode aborrecer. Num abrir e fechar de olhos estava em Lisboa e pronto a gozar uma curta licença, a primeira desde que ingressara na Marinha, pois muito em breve começaria o Curso de 1º Grau, na Escola de Fuzileiros.
Parti de Santa Apolónia depois do almoço e cheguei ao Porto, ao fim da tarde. Como tinha ali família, decidi fazer-lhes uma visita e só no dia seguinte continuar a viagem até casa dos meus pais. Distribuí beijinhos "à labúrdia" por tudo que era primo ou prima e aceitei o jantar que a minha tia me ofereceu. Na hora do "vamos dormir" acompanhei a minha prima mais velha que tinha uma filha da minha idade - fora mãe com apenas 16 anos - e que garantiu que tinha lá um lugarzinho onde eu ficaria bem instalado. Meteu. me na cama da filha e levou esta com ela para dormirem na cama de casal que era a dela e de quem mais ela lá resolvesse meter. Talvez lhe tivesse passado pela cabeça ficar ela na cama da filha e deixar-me na companhia da priminha na cama grande, mas não o fez, seria andar depressa demais.
Interrompo aqui o curso da minha história para recuar 21 anos e pôr-me no lugar dela, grávida no fim do tempo e com apenas 16 anos de idade. Que ia ser da vida dela? Tal como a mãe, aprendera a dar uns pontos, muito embora não se pudesse dizer que era uma verdadeira costureira. O pai da criança era um moço da lavoura e trabalhava ao jornal para quem quisesse os seus serviços. O casamento foi um acto que não ficou registado na memória de ninguém para além da mãe da criança que estava quase a nascer e da avó que não sabia o que fazer com filha e neta daquelas idades. Assim o marido assumiria uma parte das responsabilidades e ela podia folgar um pouco as costas.
Mas foi sol de pouca dura, o genro era um encrenqueiro de primeira, sempre metido em disputas por causa dos engates, achava-se o mais bonito lá da terra, e um belo dia acabou com a cabeça rachada ao meio por uma foice empunhada por um dos seus contendores. Filha casada, filha viúva e um novo problema para resolver.
Com aquilo que aprendera no negócio da agulha e do dedal, mudaram-se as duas para o Porto à procura da sua sorte e de um futuro que brilhasse mais que o passado. A mãe arranjou trabalho como costureira de um grupo de teatro amador e entregou a filha a quem lhe tomasse conta dela por meia dúzia de tostões. Por volta dos 4 anos já a filha ia com ela e poupava os tostões que dava a quem tomara conta dela até à data.
E assim se foram passando os anos, até que a filha arranjou também ela emprego como costureira numa alfaiataria do Porto e começou a contribuir para o orçamento da casa. Foi nesta situação que as fui encontrar naquela noite em que, regressado de Moçambique, lá fui dormir. Uma parte da história que acima resumi foi-me contada pela própria nessa noite, antes de o sono nos mandar para a cama. Todos três, demos muitas voltas na cama, cada um estranhando uma posição a que não estava acostumado.
No dia seguinte, segui viagem para o norte, gozei a minha semana de férias e ala, a caminho de Vale de Zebro, pronto a escrever outro capítulo da minha vida pessoal. Uns dias mais tarde, recebi uma carta da "prima do Porto" dizendo-se encantada pelo nosso recente encontro. Escrivão como eu era, logo teve a minha resposta e carta para cá, carta para lá, passámos assim aqueles 5 meses que durou o curso. Não sei muito bem se a conversa que íamos desenvolvendo nas cartas se podia chamar um namoro, o que contava era o que cada um tinha encasquetado na sua cabecinha. E ela partiu do princípio que aquilo era um namoro e coisa séria para nos levar até ao casamento.
Só que conversas leva-as o vento e um mês após acabar o dito curso que me dava direito a usar as divisas de Marinheiro, inscrevi-me na CF8 (Companhia de Fuzileiros Nº 8) e rumei de novo a Moçambique, minha segunda pátria. A correspondência com a prima terminara ali e soube mais tarde que custara muito mais a suportar à mãe que à filha.
Esta vendo o tempo passar, em breve faria 22 anos, e sem casamento no horizonte decidira ceder aos avanços do patrão alfaiate, convivia com ele desde os seus 16 anos, e meter-se com ele na cama. Tempos depois teve um lindo pimpolho a quem pôs o nome do avô, o tal que acabou com a cabeça rachada ao meio, mas casar nem pensar, pois o alfaiate já tinha em casa uma mulher e filhos.
Foi por essa altura que recebi uma carta da minha prima, agora tornada avó, acusando-me de ter abandonado a sua filha, levando-a assim a enveredar por maus caminhos. A responsabilidade pelo nascimento daquela criança pesar-me-ia na consciência para o resto da vida. Confesso que nunca senti esse peso, não prometi nada à rapariga e portanto não quebrei nenhuma promessa.
A alfaiataria continuou com o seu negócio a correr bem e não tardou muito que a família fosse aumentada com outro pimpolho e assim continuou até chegar aos cinco, sendo o último rebento uma menina chamada Bela que hoje vive em França. E pouco tempo depois da Bela nascer, o alfaiate enviuvou foi possível o casamento para dar um pouco de normalidade àquela família que já ia grandinha e ocupava um lugar muito seu neste mundo de Deus.
Regressei de Moçambique, na Primavera de 68 e abandonei a marinha uns meses depois. A Primavera de Praga aconteceu por essa altura, os checos viram-se livres dos russos, enquanto eu me vi livre da Armada Portuguesa que me tratou mal no último ano, roubando-me as divisas de Cabo e obrigando-me a assinar o pedido da demissão. Fui até à Bélgica, à procura do meu destino, e acabei na Alemanha a trabalhar na ferrugem. Vida pesada que me me fez regressar a Portugal e procurar outros caminhos para a felicidade que me apareceu na forma de uma fábrica de confecções, a maior que já houve em Portugal.
E foi assim que também eu me juntei à Costura, fazendo companhia às minhas primas com quem me cruzei algumas vezes e me brindavam com um olhar de partir pedra. Mas o tempo é um grande médico, cura todos os males. Aos 90 anos, o meu pai sofreu um AVC muito grave e ficou prostrado numa cama, como se estivesse em coma, durante um ano inteirinho. Essa ocorrência fez passar pela casa dos meus pais toda a família, inclusivé a minha prima e o seu marido-alfaiate. Cumprimentamo-nos cordialmente, beijo para ela, aperto de mão para ele e cada um dos três perdido nos seu próprios pensamentos.
É assim a nossa vida!
Bom dia
ResponderEliminarMais um retalho da vida de um marinheiro e aventureiro e as suas surpresas sempre muito bem contadas .
JR
Em dia de Portugal,
ResponderEliminarde Camões e das
Comunidades Portuguesas
Pôde o leitor reconhecer
O mérito sem igual
De um escritor
Que sem querer- ou querendo -
Englobou na narrativa
História, Família e Pátria.
Ali no globo rodando
Eram leitores aos magotes
Coimbra, Angra do Heroísmo
Gaia - Porto - e até o autor
Veio espreitar da sua
Póvoa do Varzim...
Assim, sim!
Parabéns ao Primo e às Primas!!
😊
Chiça! Parece que estava a ver um filme... Mas na minha opinião ficou algo por eclarecer: será que o Tintinaine lhe chegou 'a tocar nas kampaínhas?' É que seguindo o raciocínio da carta da mãe: '... recebi uma carta da minha prima acusando-me de ter abandonado a sua filha... ' dá que pensar!!! Well Done camarada!
ResponderEliminarNo body contact at all.
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