Não vou falar de futebol, mas aquilo que vou escrever começa no estádio da Luz, depois de terminado o jogo com o Sporting que o Benfica queria, podia e devia ganhar, mas não ganhou. Qualquer benfiquista, como eu, ao virar as costas ao estádio e dirigir-se para sua casa deve ter-se sentido, como eu me senti, naquele longínquo dia 9 de Janeiro de 1965.
O «Terrorismo», assim se chamava às acções levadas a cabo pelos guerrilheiros da Frelimo, dava ainda os primeiros passos e o pelotão de fuzileiros, destacado no distrito do Niassa para garantir a segurança do posto de rádio de Metangula, pouca importância lhe dava. Ouvia-se falar que andavam por ali uns "comunas" a tentar convencer as populações a revoltar-se contra os portugueses e a PIDE tinha todos os postos administrativos sob rigoroso controlo.
No dia 8 de Janeiro desse ano, chegou a Metangula um agente da PIDE, acompanhado de um Cipaio que, ouvi dizer, era especialista em interrogatórios e conhecedor do dialecto Nyanja. Comunicou ao Administrador do posto ao que vinha e reuniu com o comandante do Posto de Rádio da Marinha, pedindo a sua colaboração para levar a cabo a operação que tinha em mente.
Nós, a arraia miúda, só soubemos do caso quando nos mandaram preparar para embarcar e levantar ferro às 7 da matina do dia seguinte. Uma secção completa, comandada pelo sub-tenente que comandava o pelotão de fuzileiros destacado em Metangula, a tripulação da Lancha Castor e acima de todos, o comandante do Posto de Rádio, um oficial de Marinha com o posto de 1º Tenente. A este grupo de pessoal da Marinha juntava-se o tal PIDE e mais o seu Cipaio de quem não recordo o nome.
Saímos de Metangula, já o sol ia alto, e rumámos a norte. Com a Castor a todo o vapor, passámos em frente ao Cobué e continuámos para norte. O nosso destino era o Lipoche, pequena aldeia indígena, relativamente próxima da fronteira com o Tanganika, onde o PIDE garantia que tinha havido o tal contacto dos guerrilheiros com a população e queria tirar isso a limpo, interrogando os moradores dessa aldeia.
Chegámos ali por volta das 11 horas e recorrendo a um pequeno bote de alumínio, único recurso da Castor para o desembarque, onde era difícil acomodar 4 homens, foi desembarcada a secção de fuzileiros que se dispôs na praia para garantir a segurança. Eu era um dos 9 fuzileiros que compunham aquela secção e posso garantir que íamos completamente à vontade, sem qualquer espírito de guerra, como se fôssemos ver um jogo do Benfica ao estádio da Luz. Levávamos a G3 connosco mais por hábito do que por sentir que nos podia fazer falta, ela era uma espécie de prolongamento natural do nosso braço direito.
Na última viagem do pequeno bote, desembarcou o sub-tenente, o PIDE e o seu Cipaio. A tripulação da lancha Castor estava toda no convés a assistir àquilo, como se fosse uma festa que nunca tinham visto. Mal o bote tocou com a quilha na areia da praia começaram a zumbir balas, à nossa volta, como se fossem abelhas enfurecidas. Tivessem os atiradores da Frelimo sido mais bem treinados e teria sido uma carnificina do nosso lado.
A primeira reacção de todos foi procurar protecção. Quem estava na praia procurou uma pedra ou um desnível do terreno, onde se pudesse abrigar. Na lancha desapareceu toda a gente do convés e o marinheiro artilheiro que fazia parte da tripulação agarrou-se, com unhas e dentes, aos manípulos da Oerlikon. Do lado norte da pequena praia onde aproáramos a lancha, havia um grande monte de pedregulhos cobertos de árvores de pequeno porte. Tinha sido aí instalada uma metralhadora que, pelo seu cantar se notava não ser uma arma ligeira, que dirigia sucessivas rajadas contra a lancha. Por sorte nossa, essa metralhadora não devia ter ângulo para disparar sobre quem estava na praia. Do alto de um monte, em frente à praia, outra metralhadora fazia chover balas sobre toda a zona da praia.
Por acaso, ou por destino, eu e os 3 camaradas que comigo compunham uma esquadra de fuzileiros, tínhamos ficado do lado sul da praia, o mais acidentado e que, por conseguinte, nos oferecia melhor protecção. Alguns minutos depois de ter começado o tiroteio já tínhamos percebido de onde vinha o poder de fogo do inimigo e abrigados do lado norte, para fugir ao fogo da metralhadora que estava muito próxima da água do lago, começámos a amarinhar pelo monte acima tentando caçar os que de lá de cima fustigavam a praia e os camaradas que lá continuavam acaçapados.
É claro que a Oerlikon ia despejando metralha e fazendo estragos entre as hostes da Frelimo e, aproveitando um momento de acalmia, ouvi que me chamavam da praia. Pelos vistos, o rádio do sub-tenente deu nega, pois aquele que eu carregava como chefe de esquadra nunca piou, e á falta de outro recurso ele berrava o meu nome. Ele não fazia ideia se estávamos vivos ou mortos e tudo o que pretendia era que alguém lhe respondesse. Depois ouvi-o gritar "alto-fogo" e "vamos reembarcar".
Não tive outro remédio senão ordenar aos meus companheiros que retrocedessem em direcção à praia e, ouvindo balas a zumbir à nossa volta e a traçar os pés de mandioca pelo meio dos quais corríamos, depressa cobrimos os cerca de 200 metros que nos tínhamos afastado. Depois foi um reembarque atrapalhado e pela ordem inversa do desembarque. Quem estava em terra fazia fogo para proteger os que, com a arma às costas, tentavam subir para a lancha. A tripulação tinha pendurado cabos com nós por onde, á força de pulso, se trepava para o convés. A minha esquadra foi a última a sair da praia, com os carregadores vazios e a arma atravessada nas costas. Correr pela areia até ficar sem pé e depois nadar até agarrar um dos cabos.
Com os últimos pendurados nos cabos, o mestre da lancha fez marcha à ré e alinhou a lancha com a praia, de modo a ficarmos escondidos de quem disparava. E, numa manobra cuidadosa, foi-se afastando da praia até estarmos todos fora de perigo. No cabo a que me agarrei, tinha alguém por cima de mim que me dificultava a subida para bordo. Fiquei à espera que alguém o ajudasse a sair de lá para eu poder subir também. Soube depois que era o Cipaio que tinha sido atingido com duas balas e ali tinha morrido, tão perto que esteve da salvação.
E nós, sem munições nem confiança para ir em perseguição dos "turras", virámos as costas ao Lipoche e rumámos ao Cobué, onde deixamos o morto. Gastámos o resto do dia às voltas sem sentido, pelo menos eu não percebi o que andámos a fazer, e à noite estávamos de volta a Metangula. O sentimento com que fiquei, ao abandonar a luta e regressar a casa com um morto às costas, foi o mesmo - e recordo-o como se estivesse a acontecer agora - que ao sair do estádio da Luz sem ganhar ao Sporting, o nosso eterno rival.
Essa luta lá era de vida ou morte, no estádio da Luz, uns perdem outros ganham mas só se houver morte súbita é que alguém embarca sem regresso, em África houve quem arriscasse demasiado só com o cheiro numa medalha de herói, e são vergonhas de ditaduras para esquecer.
ResponderEliminarEssa tua ida ao Lipoche, em Janeiro do ano de 1965. Sem falares de futebol. Fartei-me de rir com esse teu bem relatado conto, acontecimento de outrora no Norte de Moçambique. Quando na lancha Castor, navegando pelo Lago Niassa foram recebidos na festa com fogo de artifício. Afinal eles só quiseram foi assustá-los. Com tantas balas disparados só uma delas terá acertado no pobre do Cipaio, o qual não se desviava para que tu pudesses passar. Nessa data tinha eu chegado ao Rio Lunho, para uma estadia de três meses num hotel de cujas as estrelas não sei quantas eram porque nunca as consegui contar! Por lá passamos tu e eu e muitos outros mais. Enquanto tu estás nessa Póvoa, eu estou aqui nesta Póvoa também para continuar a ler as tuas crónicas! Para desabafares podes e deves falar de futebol bem à tua vontade!!!
ResponderEliminar.
ResponderEliminarCitando:
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Tintinaine:
"Gastamos o resto do dia às voltas sem sentido,pelo menos eu não percebi o que andavamos a fazer"...
"Levávamos a G3 connosco mais por hábito do que por sentir que nos podia fazer falta...
.... íamos completamente à vontade sem qualquer espírito de guerra,como se fôssemos ver um jogo do Benfica ao estádio da Luz.
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António Querido:
"Em África houve quem arriscasse demasiado só com o cheiro numa medalha de herói"...
-----SEM COMENTÁRIOS-----
(para evitar ferir susceptibilidades)
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ResponderEliminarO título deste post estaria correto, se a inicial da última palavra não estivesse desaparecida em combate !!!
Segundo me lembro e durante o tempo que estive no Cobué, permaneceu por lá um agente da Pide que aparte do suposto trabalho que fazia passava os serões a contar as aventuras que teve com uma sopeira na Morais Soares...
ResponderEliminarPara completar a crónica: no dia seguinte o Leiria e o Marcolino quase iam para os anjinhos na tempestade que os assolou no lago quando foram buscar o corpo do ditoso Cipaio! Coisas da vida que a vida nos trás...!
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