terça-feira, 5 de agosto de 2025

O meu primeiro emprego!

Máquina de cardar

Um pouco antes de fazer 17 anos, o meu pai foi pedinchar aos seus vizinhos da Valfar - fábrica de tecidos que ficava do outro lado da linha de comboio, em frente da Chenop, subestação eléctrica, onde o meu pai trabalhava, desde Outubro de 1954 - um lugarzinho para empregar o seu filho mais velho que, depois do 5º Ano, abandonara os estudos. Por razões de ordem económica, claro, que o meu pai já tinha feito uma apertada ginástica orçamental para me manter como estudante até essa idade.

O Sr. Monteiro era o chefe de escritório e foi a ele que o meu pai recorreu. Através de uma intrincada rede de influências, no feminino, conseguiu que o pedido chegasse ao Sr. Monteiro, antes de o abordar à entrada do portão da fábrica, pelas 9 horas da manhã. Bom dia, Sr. Monteiro, venho aqui por causa daquele pedido que a senhora esposa do meu patrão lhe fez chegar, há alguns dias, disse o meu pai, enquanto rodava o chapéu entre as mãos nervosas.

Ele que venha, na próxima segunda-feira, às 8 menos um quarto e se apresente ao Sr. Machado da Casa do Pano, foi a resposta do chefe de escritório que depois se encarregaria de combinar com o tal Machado (fraca rês) para me receber. Estava traçado o meu destino e o meu pai regressou ao seu trabalho, de onde tinha fugido por alguns minutos, com o coração aos pulos de alegria. Eu era o filho mais velho e já me tinha encaminhado na vida, depois de o ter feito com o meu outro irmão (2 anos mais novo que eu) que já tinha empregado como marçano numa mercearia da vila.

A minha vida na Casa do Pano da Valfar não duraria muito. Em Novembro, desse mesmo ano de 1961, meti, inadvertidamente, o dedo indicador da mão direita nas correntes de uma máquina "dobradeira" ao tentar chegar ao botão para a fazer parar. Que raio de idiota tinha montado o interruptor eléctrico dessa máquina entre as correntes que a faziam mover para trás e para a frente. Falha de segurança grave que eu suponho ter sido corrigida depois do meu acidente.

Fiquei com a falangeta quase decepada, apenas presa por um pouco de pele, e foi uma corrida até ao Posto de Enfermagem da Companhia de seguros para ver se tinha que ser amputado ou cosido para tentar salvar o dedo. Para cortar temos sempre tempo, disse o enfermeiro, enquanto lavava a ferida que tinha ficado bem lubrificada com óleo e massa consistente. Para já vamos coser isto o melhor que pudermos e depois o teu corpo fará o resto. Se a ferida não sarar, então talvez tenhas que ficar sem a ponta do dedo, mas acredito que ainda vais fazer muitas cócegas com ele, quando arranjares uma namorada.

Dois meses de baixa pelo seguro e eis-me de volta à Casa do Pano e à chefia do Sr. Machado que metia medo a toda a gente de tão rigoroso e inflexível que era. Nos entretantos, tinha sido montada uma enormíssima máquina de cardar, numa dependência anexa à Casa do Pano, uma novidade na Valfar e que se destinava a transformar em flanela o tecido de algodão que a fábrica produzia para vários fins. Nem todos os tecidos eram para cardar e competia aos escriturários da mesa tomar a decisão de quais iam para um lado e para o outro, após receber o tecido vindo da tecelagem.

Cada tear tinha uma teia e uma tabela (pequeno rectângulo de madeira em que estava colada uma tabela de operações destinadas a cada tecido) que acompanhava o corte de tecido, quando este saía do tear e era entregue na Casa do Pano para iniciar o processo de acabamento. Alguém tinha decidido que os tecidos não destinados à carda tinham uma cruz vermelha nessa tabela, mas depois do meu regresso ao trabalho ninguém me avisara desse pormenor.

Ou seja, o primeiro corte que me passou pelas mãos com a tal cruz vermelha na tabela, foi parar direitinho à carda e no dia seguinte acordou tudo aos berros, quando o Sr. Machado que era madrugador, entrou na secção onde trabalhava a cardadeira e viu aquele tecido a cardar, o qual se destinava a um cliente que o esperava com urgência, mas sem carda. Quem foi o apontador (nome da minha especialidade) que despachou este tecido para aqui, vociferou ele para o encarregado da carda?

Correram a buscar a tabela da respectiva teia para ver de onde vinha o engano e lá estava a fatídica cruz vermelha que eu não vira, nem sabia para que servia. Com os olhos fora das órbitas, o Machado gritou, logo que soube que fui eu o apontador a cometer o erro, fora da porta, vai para casa e fica lá até nova ordem. Todos se lembram como eram esses tempos do salazarismo em que a autoridade dos pais, dos chefes ou dos professores nunca podia ser posta em casa.

Aqueles 40 ou 50 metros de flanela aos quadradinhos pretos e brancos foram inutilizados e seriam vendidos a qualquer retalheira que andasse no negócio dos farrapos. na lógica deveria ser eu a pagar o prejuízo, mas teria que trabalhar muitas semanas (ganhava 105$00 por semana) para juntar essa quantia de dinheiro. Na prática acabei por não pagar nada, mas o chefe nunca mais aceitou que eu regressasse ao trabalho.

Lá pelos fins de Janeiro, do ano de 1962, e depois de muitos pedidos dirigidos ao Sr. Monteiro, mandaram-me apresentar na Expedição que era chefiada pelo Sr. Rui, homem muito importante na empresa, que era sobrinho do patrão. O seu ajudante e que passou a ser o meu chefe, era um seu primo, também ele sobrinho, mas neste caso da mulher do patrão. Má sorte a minha ter sido metido naquela equipa que gostava de tudo menos de trabalhar a sério.

O meu chefe directo, o Zé Maria, nunca aparecia antes das 10 horas, ou perto disso, e depois do almoço desaparecia como que por milagre. Fui fazendo queixas ao meu pai que não me agradava aquela situação e um dia ele apareceu-me com uma proposta. Estive a falar com o Sr. Óscar, disse-me ele, e estão abertas as inscrições para voluntários para a Marinha, não gostarias de tentar a tua sorte? Olha que não há nada que pague um emprego do Estado, continuou ele como se dissesse, tomara eu poder fazer isso.

E nesse mesmo dia, fui à Capitania do porto de Vila do Conde, à procura desse senhor Óscar que eu só conhecia de nome. O teu pai gostaria muito que tu seguisses a Marinha, disse-me ele, logo que soube quem eu era. Queres preencher o formulário de inscrição? As inspecções serão na primeira semana de Março. Claro que preenchi o formulário e de passagem pela Valfar que ficava no caminho de casa, entrei e comuniquei ao Zé Maria que tinha que ser ele a fazer o trabalho que deixara às minhas costas, durante mais de um mês, pois eu nunca mais ali entraria.

Uns dias depois, apresentei-me no escritório da empresa para falar com o Sr. Monteiro, agradecer-lhe a amabilidade tida comigo, ou com o meu pai, e participar-lhe a minha decisão de me alistar na Marinha, razão pela qual teria que abandonar o trabalho. Ele chamou o homem dos pagamentos, deu ordem para regularizar as contas comigo e desejou-me sorte na minha aventura.

Nunca mais encontrei nenhuma destas personagens. A fábrica foi tendo cada vez mais dificuldades e não resistiu ao 25 de Abril. Soube que o patrão velho se tinha retirado do negócio e deixou o seu sobrinho Rui ao leme da empresa. Ao fim de pouco tempo ele vendeu tudo aos chineses e foi pregar para outra freguesia. Do senhor Monteiro tinha notícias através de uma filha que casou com um ricaço da minha aldeia e do Zé Maria nunca mais tive notícias (nem saudades).

Isto é tudo o que resta da Valfar 

2 comentários:

  1. Bom dia
    Pode se bem dizer :
    Retalhos da vida de um marinheiro.
    Acho que já ouvi esta história algures por aqui, mas posso estar enganado.

    JR

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  2. Interessante relato do qual me associo um pouco. No meu caso tive que sair da escola para forçar o velhote a assinar porque segundo me gritou várias vezes ao ouvido 'Para a Marinha só vão os que não tem pai nem mãe'... Nunca tive oportunidade de lhe perguntar como chegou a essa conclusão!

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