Há malta que cai sempre no exagero, quando contam as suas experiências de vida. Isso nota-se muito nas passagens da Guerra Colonial, contadas na primeira pessoa, publicadas em jornais como o Correio da Manhã. O contador precisa que o vejam como um herói e tende a exagerar para dar mais brilho à sua história.
Fiquei a pensar nisso, quando decidi abordar, aqui no blog, aquele episódio em que eu fui baleado num braço e tive que ser internado no Hospital Central de Lourenço Marques para me coserem a pele. Como posso, ou devo, contar a história? Como a contará o Viseu - alcunha por que era conhecido o "polícia militar" que me deu o tiro?
Eu posso armar-me em coitadinho que foi baleado, injustiçado, maltratado e sair por cima, como o herói dessa história. O Viseu pode contar a coisa à sua maneira e ser o herói que travou um bandalho que só apareceu ali para criar confusão, correndo-o a tiro pelas ruas da capital de Moçambique. Estou a vê-lo, hoje, sentado numa esplanada, na sua cidade natal, rodeado de outros velhos camaradas da tropa, esvaziando umas imperiais e partilhando as suas memórias da guerra (que alguns nunca conheceram, pois nunca saíram da cidade). Conta lá como foi isso de dares um tiro num fuzileiro!
E eu que nunca contei essa história, mas já a abordei aqui num dos meus blogs, também já fui requisitado para contar como isso aconteceu, quais foram as consequências e como me safei dessa sem um castigo que me emporcalharia a Caderneta Militar mais do que ela já estava. Para os mais curiosos digo que a bala de 9 m/m disparada por uma pistola Walter e que me estilhaçou o cúbito em 7 pedaços, senti-a como a picada de uma melga. As dores vieram passado mais de meia hora e foram difíceis de aguentar. Quero uma injecção de morfina, gritava eu para os enfermeiros que cirandavam por ali, enquanto eu gemia numa maca de hospital, nas Urgências.
Nunca quis contar a história com todos os pormenores, nem vou contá-la agora, há coisas que devem ficar sempre connosco no segredo dos deuses. Digo apenas que a primeira visita que recebi foi a do comandante da Companhia 8 que deve ter ficado pesaroso por o Viseu ter tão fraca pontaria e não me ter mandado para o outro mundo, livrando-o de uma presença incómoda.
A nossa guerra (a minha e dele) começou ainda a bordo do Niassa, no segundo ou terceiro dia de viagem, a caminho de Moçambique. Ele queria dar aulas de ginástica, logo a seguir ao pequeno almoço, e nós revoltámo-nos contra essa medida, deixando-o sozinho, no convés de apito na boca. Alguém lhe deve ter soprado (?) que fui eu quem instigou aquilo. Disse-me o Sargento Maltês que esteve connosco no convívio realizado em Pombal que havia uma verdadeira rede da PIDE dentro do nossa Companhia e que eu estava no topo da lista de suspeitos. Quer dizer que foi um verdadeiro milagre eu ter escapado de um negro destino.
Mas também existia uma rede de anti-salazaristas que incluía um oficial de alta patente do Comando Naval. E esse oficial tinha um primo que era meu amigo e me ajudou a livrar-me daquele aperto. Felizmente para mim, o castigo a que eu estaria sujeito se fosse considerado culpado, ultrapassava as competências do comandante de Companhia e foi remetido para o Comando Naval que devia dar seguimento ao inquérito e dar a informação ao comandante para estabelecimento da pena que seria, no mínimo, de um mês no Forte da Xefina (pequena ilha à saída do canal e que era uma prisão militar).
O facto, ainda hoje sem explicação, é que o processo desapareceu nos meandros de influências do Comando Naval e, até hoje, não foi encontrado. Eu, depois de cosido e engessado a preceito para permitir a correcta calcificação do cúbito, passei 60 dias de férias, pois não podia pegar na G3 e, por conseguinte, estava dispensado de todo o serviço. Ainda bem que sou dextro e foi o braço direito o atingido, senão ainda me punham a trabalhar em qualquer coisa que só precisasse de um braço, ou mão, para ser executado.
Gesso fora e começaram as sessões de fisioterapia que me levaram ao hospital, dia sim dia não, para esticar o braço que, depois de ser retirado gesso, ficou a fazer um ângulo recto, cujo vértice era o cotovelo. Ainda as sessões iam a meio e foi a Companhia, na sua totalidade, destacada para o Niassa para substituir a CF6 do comandante Patrício que estava em fim de comissão. Mal soube da notícia, fui ter com o comandante e perguntei-lhe se ficaria em Lourenço Marques para completar a fisioterapia, pois o braço ainda pouco tinha recuperado. Ele mandou-me esticar o braço, ao máximo que eu conseguisse, e disse-me logo que no mato, a correr atrás dos turras (ou à frente, coisa que também me aconteceu, mas isso é outra história) ficaria bom em pouco tempo.
E assim ficaram esquecidas, mas nunca perdoadas, as consequências daquele disparo da pistola do Viseu. Por ser o Nº 1 da lista de suspeitos de insubordinação ou por outra qualquer razão que só o diabo conhece, acabei por bater com os ossos na prisão (do quartel da Machava), perdi as divisas de cabo e tracei o meu destino na Armada. Incorrer no Art.º 62 era o caminho mais rápido para abandonar a Briosa, o que aconteceu, mal pus os pés na Metrópole, depois da comissão cumprida na CF8.
Bom dia
ResponderEliminarUm episódio macabro que acho que nunca tinha ouvido.
JR
Li duas vezes para não perder os detalhes mas nada... Só suspense! O tal ingrediente num bom livro. Interessante post.
ResponderEliminarEste história para mim é nova.
ResponderEliminarCreio bem que nesta soberba narrativa - como de resto é soberba toda a sua escrita - a parte que nos forneceria o princípio, o meio e o fim de uma história de guerra e seus percalços, foi a parte que ficou no segredo dos Deuses, melhor dizendo, na posse do Fuzileiro Tintinaine... :)
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