terça-feira, 15 de julho de 2025

Os Sousas!

 


Desde o Século XIX, quando o meu trisavô Joaquim foi a Balazar engatar uma miúda com quem viria a casar, que o apelido Sousa entrou na minha família e foi passando de geração em geração até chegar à minha mãe. Sempre transportado pela linha feminina da família até a minha mãe se casar com um Silva que passou a imperar na família, daí em diante.

Só os filhos varões transportam o apelido do pai para a geração seguinte. O meu pai teve 7 filhos e desses filhos nasceram 14 netos. Alguns dos netos têm já alguns herdeiros do sexo masculino, portanto o meu actual apelido parece capaz de enfrentar a concorrência por muito tempo. É preciso é que eles se vão casando e multiplicando, coisa que, ultimamente, vem acontecendo cada vez menos.

Mas deixemos os Silvas sossegados que eu, hoje, vim aqui falar dos Sousas. Há dias, descobri no Facebook um Sousa que me despertou algumas suspeitas, por no seu perfil constar algo que me era familiar. Enviei-lhe uma mensagem e tive a confirmação de que se tratava de um familiar, primo afastado. O seu avô era primo direito, ou primo-irmão, como alguém gosta de dizer, da minha avó Eusébia de Sousa.

Este Sousa teve uma série de filhos e filhas, entre eles um frade e uma freira, e depois do nascimento do mais novo "amandou-se" para o Brasil e mais ninguém lhe pôs a vista em cima. Esse mais novo tinha o nome de Armando e tinha uma meia dúzia de anos a mais que eu. Ele estudava num seminário, quando eu andava na 4ª Classe e nas férias juntávamo-nos com frequência. Este rapaz que agora encontrei no Facebook é o mais novo de dois filhos que o Armando teve.

Um certo dia, devia ele andar pelos 15 anos de idade, a mãe dele ordenou-lhe que apusesse as vacas ao carro (apôr significa, em linguagem minhota, aparelhar e engatar ao carro de bois) e se preparasse para ir a Pedra Furada, a casa de um irmão mais velho que casara e ficara a viver nessa freguesia, buscar umas tralhas quaisquer que lhe estavam a fazer falta.

Com o abandono do marido a mãe do Armando vivia uma vida de privações e tanto quanto me consigo lembrar só morava com ela a filha mais velha, além do Armando quando vinha de férias no verão. E vacas nunca me lembro de ela ter, mas o facto é que o carro foi aparelhado e eu convidado para o acompanhar na aventura.

Era uma viagem de cerca de 3 quilómetros para cada lado e o Armando nunca tinha tirado carta de condução daquele veículo. Nos caminhos com menos trânsito, de veículos semelhantes que automóveis eram coisa rara naquele tempo, íamos os dois em cima do carro e o Armando ia tocando as vacas com uma vara comprida munida de um aguilhão para as manter no sítio e velocidade certa.

Automóveis havia dois na freguesia, mas era muito raro vê-los na estrada e a camioneta da carreira para Barcelos ainda não existia, nessa altura. Isto para dizer que não era necessária uma formação detalhada para levar um carro de bois pela estrada fora num percurso de 3.000 metros. Para as vacas mexerem as perninhas bastava uma aguilhoada nos quartos traseiros e era uma beleza vê-las a trotar. Se não se mantinham à direita, um leve toque com a vara na vaca que puxava do lado esquerdo e logo a direcção era corrigida.

Tanto quanto consigo perceber pela leitura dos documentos antigos e das ligações da família, aquela quinta, onde fui com o Armando, situada na freguesia de Pedra Furada, era terra da minha família ancestral. A minha bisavó foi mãe solteira e foi lá que se refugiou para ter o filho, só de lá saindo 10 anos depois, quando aceitou uma proposta de casamento de um velho viúvo e foi morar para a Lagoa Negra. Talvez um dia me decida a escrever a história desse casamento, além da «Lenda da Lagoa Negra».

Já anoitecia, quando nos fizemos ao caminho de regresso. Não sei se sabem, mas as vacas, quando vão a caminho de casa, trotam com mais ligeireza e não faz falta a vara para as tocar. Elas conhecem o caminho, ou adivinham-no, e sabem que chegando a casa podem descansar e comer a sua ração de erva e palha que o seu dono tem preparada para as compensar do esforço. Além de que o lugar de onde partimos ficava num nível mais elevado e, a caminho de casa, era sempre a descer.

Dessa viagem ainda recordo uma outra coisa que o Armando me ensinou. Queres apanhar um melro, perguntou-me ele? Eu conhecia bem os melros e sabia que era quase impossível apanhá-los, de tão lestos que eles eram a escapulir-se. Mas ele fez-me sinal para não fazer qualquer ruído e ir atrás dele. Dirigiu-se para debaixo de uma ramada de videiras, parou e pegou na minha mão apontando para cima, para o meio das folhas de videira. Olhei na direcção que ele me indicava e vi um melro a dormitar com a cabeça debaixo da asa.

É assim que eles descansam e sempre no mesmo sítio, posso vir aqui todas as noites que ele está sempre ali. Mas se ele acordar e vir que foi descoberto o seu refúgio, desanda dali para fora e nunca mais volta, disse o Armando. E 70 anos passados, parece que ainda o estou a ver, com o indicador levantado e apoiado sobre o nariz a recomendar-me que não fizesse o mínimo ruído.

Para terminar esta curta história trazida da minha infância, só me falta dizer que, depois de eu ter mudado de residência e, posteriormente, alistado na Marinha, aos 18 anos, nunca mais vi este meu primo e só depois de o encontrar, aqui na Póvoa ao balcão de um banco, soube de toda a sua história. Saiu do seminário após o exame do 7º Ano e fez-se bancário. Começou em Famalicão e depois mudou-se para a Póvoa, onde ficou a viver até ao dia da sua morte, vítima de cancro, já lá vão perto de 20 anos.

E este mundo é uma bola que rebola sem nunca parar!!!

1 comentário:

  1. Uma infância colorida que nunca tive o prazer de disfrutar. Em Lisboa melros & vacas era substituidos pela 'chico-espertice' das grandes cidades... A primeira vez que tive contacto com 'um Sousa' foi em Vila Franca de Xira. O som do 'The Stars and Stripes Forever' do conhecido John Philip Sousa na parada da Escola Alunos Marinheiros era simplesmente mágico...

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