Muito se fala desta doença ligada aos combatentes da Guerra do Ultramar. Eu nunca senti nada disso, mas coisas houve que me deixaram a pensar, seriamente, no assunto. Muitas vezes acordei aos saltos, depois de ter sonhado com tiros, minas a explodir debaixo dos pés e morteiradas a assobiar nos ouvidos. A minha sogra, ao ouvir o que a minha mulher lhe contava só sabia dizer: - ele veio maluco da guerra! Isso durou alguns anos a passar, mas continuei com pesadelos ligados à guerra, durante muitos anos.
Vou contar-vos um caso que me aconteceu uma série de vezes, durante anos. Talvez a origem deste pesadelo tenha a ver com uma viagem que fiz, num sábado à noite, para ir ao cinema a Vila Cabral. Depois do jantar (que era bem cedo) o comandante da Base Naval pegou num Jeep Toyota de caixa fechada que levava 6 pessoas e convidou-me e a outros camaradas da CF2 para irmos ao cinema à capital do distrito do Niassa (assim se chamava naquela altura).
Era uma viagem de mais ou menos duas horas para cada lado, se corresse tudo bem e fora da época das chuvas, pois nessa altura era fácil ficar pelo caminho. Uma derrapagem no matope (lama de argila) em qualquer curva podia deixar os viajantes empanados e a precisar de reboque. Num deserto como é o Niassa, bem podíamos esperar sentados.
Mas, voltando ao meu pesadelo, eu sonhava ter ido a Vila Cabral e no regresso esqueceram-se de mim deixando-me para trás. Não tinha forma de regressar a não ser a pé. A guerra ainda não tinha grande significado, nesse tempo, e a população indígena não era tão anti-colonialista como se tornou mais tarde, mas eu tinha a noção que podia esbarrar-me com algum "inimigo" pelo caminho. Mesmo assim e pensando nas muitas provas de corrida, marcha, sobrevivência, etc. que tinha feito na Escola de Fuzileiros, achei que seria capaz de papar aqueles 120 quilómetros a butes.
Era uma viagem noturna - por isso a relaciono com a ida ao cinema - e pensei que entre marcha e corrida poderia chegar a Metangula, antes do meio dia, evitando grande alarme com a minha falta na formatura da manhã. Era mesmo um sonho estúpido, pois mesmo que corresse a uma velocidade média de 12 Kms por hora, demoraria 10 horas a fazer o caminho. Mas nisto dos sonhos tudo é possível. Bem decisão tomada, fiz-me ao caminho.
Ia sempre encostado a uma berma, pronto a saltar para o mato se visse aparecer alguém na estrada. Mas não aconteceu nada, cheguei a Maniamba - a cerca de 20 Kms do destino - e já era dia. Escondi-me antes de entrar na povoação a pensar no modo de passar por ali sem atrair a atenção de ninguém. Corri para trás da primeira palhota que havia ao lado da estrada e espreitei para um e outro lado, não havia ninguém à vista, por isso decidi ir de palhota em palhota, sempre pelas traseiras e cheguei ao outro lado da povoação sem problemas.
Fui andando, agachado por entre o mato, durante cerca de 1 Km e depois de uma curva regressei à estrada. Fui caminhando com toda a calma, vendo o meu destino já bem próximo. menos de 20 Kms não é obstáculo para um fuzileiro habituado à vida dura e com muito treino nas pernas. Não era bem o meu caso, pois tinha-me fartado de fazer gazeta, durante a instrução, só corria quando não tinha maneira de fugir. Em sonhos a gente nunca se sente cansado, de modo que lá ia eu cantando e rindo a caminho do Lago Niassa.
Às tantas, surge um grupo de pessoas, vindo na minha direcção. Tal como eu os tinha visto, também eles me viram a mim. Como não tinham nada cara de "terroristas" nem havia nenhuma arma à vista, decidi prosseguir a caminhada. Desatar a correr para o meio do mato não me pareceu grande ideia, por isso era seguir em frente e rezar para que nada acontecesse. Quando passei por eles, levantaram os braços em saudação e seguiram o seu caminho. Animado com aquilo e como o terreno era sempre a descer, em direcção ao lago desatei a correr.
Corri até ficar sem fôlego e então ... acordei!