Ao fim de quase 56 anos será muito difícil deslindar a história que cada um, naquela época, escreveu do modo que lhe dava mais jeito. A Frelimo nem existia ainda, mas quando pegou no assunto, anos mais tarde, convinha-lhe que os mortos fossem às centenas para denegrir tanto quanto possível a imagem dos colonizadores portugueses. Aos portugueses convinha que o caso passasse despercebido, aos olhos dos observadores internacionais que estavam de olho naquilo que Salazar fazia em África, e por isso uma dúzia de mortos já seria mais que suficiente. A fotografia que acompanha a minha mensagem de ontem, onde se vê uma dúzia de corpos caídos, se calhar, é a melhor prova de que a "tremenda mortandade" não passou disso mesmo, cerca de uma dúzia de mortos.
Entre ontem e hoje já levo umas boas 6 horas de leitura e interpretação de documentos ligados a este assunto e parece-me poder dar crédito a um moçambicano que deixou estes comentários no blog «Moçambique Terra Queimada». Vários comentadores, com opiniões diferentes e tendências politicas mais diferentes ainda, se debruçaram sobre o assunto e ao transcrever para aqui este bocadinho, eu acredito que pesquei o que de mais interessante havia no documento.
Segundo Adelino Gwambe:
Numa carta enviada à ONU, foi colocado o número de 36. Ora, à partida, esse número seria exagerado para impressionar a comunidade internacional, por questões de propaganda. A probabilidade é serem menos mortos.
Segundo dois relatórios do exército português, um fala de 13 e outro de 14. Mas aqui também entra a questão de propaganda, para minimizar a carnificina. Erro seria confiar nos dados fornecidos pelo próprio assassino. O regime minimizou o sucedido, como reportou o Notícias de 18 de Junho e o Século de 19 de Junho de 1960 quando escreveram que:
«Durante uma banja (reunião tradicional de indígenas por convocação da autoridade administrativa), realizada em Mueda, distrito de Cabo Delgado, no dia 16 , agitadores vindos do Tanganhica apedrejaram o edifício da administração e tentaram perturbar a reunião. A força pública interveio imediatamente e obrigou a retirar os intrusos, alguns dos quais foram agredidos pelos indígenas portugueses».
Segundo Felix Joaquim, o homem que, tal como Daudo Atupali, substituiu Kibiriti quando este foi preso nesta data, numa carta dirigida ao chefe do Governo Russo, falou de mais de cem mortos,
Chipande (que dispensa a apresentação), um dos sobreviventes falou de mais de 500 mortos, num relato que Eduardo Mondlane colocou no Lutar por Moçambique.
Parece-me ser Yussuf Adam (não tenho a certeza) fala de 17, baseando-se na tradição oral, feita na década de 90 (1993? ou antes), tempo suficiente para muitas testemunhas terem perecido.
Do conhecimento geral, o dia 16 de Junho foi o culminar das mortes que vinham acontecendo desde Janeiro. Por enquanto deixo aqui uma parte da Carta de Adelino Gwambe, que me referi acima, onde faz referência das mortes anteriores a 16.
Quando Gwambe escreveu a carta para a ONU e após a mesma ter sido interceptada pela PIDE, o governo de Lisboa pediu esclarecimento ao governo de Lourenço Marques sobre o que tinha acontecido em Mueda, a fim de saber defender-se na máxima «orgulhosamente sós» na Assembleia das Nações Unidade. O relatório foi, na essência, manipulado mas deixa luz sobre os antecedentes. Resumindo:
Em 18 de Fevereiro de 1960, Faustino Pereira Cesteiro Vanombe, o então presidente da Sociedade dos Africanos de Moçambique, visitou Cabo Delgado, tendo realizado diversas reuniões secretas com alguns locais. Três dias depois, foi chamado à sede da circunscrição e lá disse que queria tratar do regresso dos Macondes da Tanzania para Moçambique.
Em 23 de Fevereiro, foi mandado para regressar a aguardar pela decisão do seu pedido. Em 22 de Março, um mês depois, pela ausência de qualquer reacção de Lourenço Marques, Tiago Mula Mulombe, presidente da Tanganyika Moçambique Maconde Union, foi a Mueda para saber como é que foram acolhidas as questões de Vanombe pelas autoridades portuguesas . Pediu apoio do regime para regresso dos Macondes do Tanganyika. Foi preso, interrogado e enviado a Pemba.
Em 27 de Abril, Simão Nchucha, Lazima Ndalama, Simone Chambumba, Modesta Yosuf (rapariga de 21 anos de idade), Mariano Tumianeto, Cosmo Paulo e Titico Funde, que haviam sido aliciados em Fevereiro por Vanombe, disseram que queriam instalar a sua organização em Mueda. Foram presos e enviados para Porto Amélia (Pemba).
Em 13 de Junho, apresentaram-se em Mueda, Faustino Vanombe e Quibiriti Divane, acompanhados por uns 300 populares. Até ao final do dia, o número da população aumentou para 500. Exigiam a libertação dos presos e Quibirite disse que queria passar a residir em Mueda. Mas não foi atendido.
A 14 de Junho, regressou com cerca de mil populares que expuseram algumas das suas reivindicações. A Resposta do administrador foi que o Governador visitaria Mueda no dia 16 e que, por isso, uma ocasião para exporem as suas preocupações. Os populares concordaram.
No dia 16 já eram mais de 5000 acompanhantes de Quibiriti. Na cerimónia do içar da bandeira, a maioria ficou indiferente, sentada e com chapéus sobre as cabeças. Inconformado o governador, mandou repetir a cerimónia e no fim, chamou para a secretaria Vanombe e Quibirite bem como outros que nos dias 13 e 14 se havia revelado cabecilhas. Pouco depois, o Governador anunciou a detenção daqueles dois e foram algemados na varanda da secretaria, à vista da multidão.
O povo gritou pela libertação daqueles. Quando o governador quis sair, foi apedrejado e teve que regressar para a secretaria. No momento em que um indígena tentava apunhalar o Governador, ouviu-se um tiro. Chegou, em seguida, um pelotão de infantaria que, secundando os cipaios, pôs os amotinados em debandada.
E num segundo comentário, acrescentou:
Segundo os autos de Lourenço Marques, em relação aos condenados, todos os 10 ligados aos tumultos de Mueda receberam 5 anos de prisão, em 16 de Agosto de 1961. Uma vez cumpridas as penas, não podiam regressar as suas zonas de origem. Assim sendo, foram aplicadas as seguintes penas:
Simão Nchucha devia fixar residência em Lourenço Marques, numa aldeia afastada da cidade.
Simone Chmchumba e Titicó Fumbe deviam ir para Inhambane, em localidades afastadas entre si.
Lazima Dalama e Cosmo Paulo, deviam fixar residência em Gaza também afastados um do outro.
Mariano Tumianeto e Madesta Yosuf (única mulher do grupo, com 22 anos), deviam ir para o distrito de Manica e Sofala, separados entre si.
Quibirite devia ir para Inhambane, Vanome para Govuro, e Tiago para Gaza.
Vale a pena ressaltar que quase todos os presos morriam antes de cumprirem as referidas penas.