domingo, 13 de agosto de 2023

Crónica de um dia para esquecer!


 No dia 1 de Julho tive que entregar o quarto ao senhorio e, por consequência pegar na minha tralha toda e metê-la no comboio com destino a Portugal. O senhorio nem era má pessoa, só mudou depois de descobrir que eu levava para lá a namorada para dormir comigo e me aquecer os pés, de vez em quando. Um dia dirigiu-lhe a palavra (não faço a menor ideia do que lhe tenha dito) e ela soltou-lhe os cães. Aquela gente, quando se zangava desatava a falar no dialeto da região e eu que mal entendia o alemão ficava a ver navios com o plat (como eles o designavam e eu acredito que significava "local" o tal dialeto). Ele só respondeu, para encerrar a discussão, um "não precisas de ser mal educada" e virou-lhe as costas, entrando na Tabacaria de que era proprietário e ficava no rés-do-chão do prédio, em que eu alugara o quarto.

Nesse já longínquo dia 1 de Julho, do ano em que terminei a minha aventura como emigrante, empacotei as minhas coisas numa mala, as da minha mulher numa outra mala, o resto num ou dois sacos com asas, sobrando-me, naquele quarto, um rádio e uma televisão, além da mesa que servia para tomarmos as refeições e as respectivas cadeiras. Gostava tanto daquela mesa que resolvi carregá-la comigo para Portugal. O rádio era um daqueles Blaupunkt antigos, de válvulas que parecia uma peça de museu e de que eu também não me quis separar. O que ficava para trás deixei de herança a um português que era meu colega de trabalho na firma que me deu emprego, a mim e a ele, entrámos ao serviço no mesmo dia. Se calhar até fomos no mesmo comboio que saiu de Santa Apolónia e rumou à Alemanha por caminhos que eu desconhecia e nunca mais por lá passei. Pelos vistos os emigrantes dispensados pelo Salazar ao governo alemão não mereciam viajar pelo canal do Sud-Express, era mais um comboio a fazer lembrar os que carregavam os judeus para Treblinka.

E aí estava eu na pequena e esquecida estação de Euskirchen, a cerca de 40 Kms a sul de Colónia com a tralha toda no cais de embarque. Felizmente o meu quarto ficava mesmo em frente da estação, era só atravessar a rua e pronto, senão precisaria de ajuda para carregar aquilo tudo. Era uma linha de via estreita que ligava a grande cidade alemã à fronteira da Bélgica e me fazia lembrar a Póvoa com a sua via estreita que ligava o Porto a Famalicão, passando pela Póvoa. Até o comboio era parecido, bancos de madeira, janelas de guilhotina, possivelmente uma recordação de muitos anos antes da II Grande Guerra. O chefe da estação esperou que eu metesse tudo para dentro da carruagem e depois soprou no seu apito, dando ordem ao maquinista para me levar para longe dali.

A minha mulher de pouco me servia, não tinha físico para carregar as malas nem a mesa, mas lá foi meter os sacos dentro da porta da carruagem e regressou para levar o rádio que eu tinha embalado numa caixa de cartão com uma pega feita do cordel com que a amarrara. Na mesa eu tinha montado uma espécie de bandoleira para poder carregar aquilo ao ombro e levar uma das malas em cada mão, mas para entrar no comboio tinha que ser uma coisa de cada vez. Eu já sabia que teria que mudar de comboio, em Colónia, depois em Paris, a seguir em Hendaya e finalmente na Pampilhosa, antes de chegar ao Porto e, mentalmente, já ia preparado para o esforço.

Uma viagem longa, quase dois dias dentro do comboio, nada que se compare às viagens de hoje, por avião que não duram mais de 3 horas. Muito trabalho, pouco de comer e nada de dormir, eu cheguei à Pampilhosa e quando carreguei os meus pertences para a outra plataforma, onde deveria apanhar o comboio com destino a Campanhã, senti-me a ir abaixo das canetas. Estava com 38º de febre e mal cheguei a casa (da sogra) enfiei-me na cama e só de lá saí dois dias depois.

Não posso dizer que tenha sido um emigrante exemplar, mas fiz o meu papel. De empregado de escritório passara a trabalhar na ferrugem, amealhei uns bons Marcos (DM) e tive a sorte da minha vida ao encontrar, em Portugal, um emprego para a vida, como já vos contei, e passar o episódio da emigração para o arquivo das memórias.

3 comentários:

  1. Se esta narrativa é 100% fiel à realidade, não vem ao caso. Portanto, guardo para mim as incoerências notadas.
    O que importa é que 'mulher' e 'namorada' nunca se tenham encontrado... no mesmo dia, na mesma hora, na mesma cama...🤭
    E, claro, que a sua vontade de escrever, continue em alta.
    O resto, mais coisa menos coisa, tá-se sempre bem.
    Saudinha!

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    1. Não me orgulho de tudo o que fiz pela vida fora, mas não me escondo nem fujo à responsabilidade.

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  2. Tal como a vida militar ser emigrante não é para todos. Embora se emigre por vários motivos a principal foi e será sempre - a razão económica. Porém no meu caso pessoal ir de de emp. bancário a emigrante foi a lógica de uma juventude onde os prazeres mundanos adquiridos em Lourenco Marques valiam muito mais... Hoje já septuagenário e com 50 anos a calcorrear mundo, nunca sairia da minha terra!!! A identidade e a cultura adquirida nos primeiros 16/18 anos marcam-nos para o resto da vida e sem elas - falta-nos sempre algo.

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