Pista de lodo dos fuzileiros
No primeiro sábado de Julho, comemora-se o Dia do Fuzileiro. Neste ano de 2023, foi ontem que a festa aconteceu. Reunião na Casa-Mãe, abraçar os camaradas com quem partilhámos momentos especiais, emborcar umas bejecas (alguns parece que vivem só para isso) e recordar os velhos tempos. Muitos partilham a saudade dos tempos passados na guerra em África, mas a maior parte vai lá para recordar a mocidade perdida que, por mais que a gente esprema a mente, não voltará mais. Ficou lá para trás, perdida no tempo e embrulhada na recordação dos melhores momentos vividos. Os piores mais vale esquecer para evitar pesadelos.
Durante a guerra colonial, as tropas especiais sobrepunham-se a tudo o que era tropa regular, fosse do Exército, da Marinha ou da Aviação. Embora os outros fossem aos milhares e as tropas especiais às centenas, só destas se falava, quando se discutia a guerra e os seus eventos. Os »Comandos» vão lá e partem aquilo tudo. Se a coisa está difícil chamem os «Fuzileiros» que eles resolvem. E se u lugar é num ermo, onde não entra carro nem carroça, lancem um grupo de «Paraquedistas» que esses vão a qualquer lado.
Fuzileiros, Comandos e Paraquedistas eram, por conseguinte, os heróis da guerra. Quem quiser ler alguns episódios mais marcantes dessa guerra (em que eu tive o desprazer de participar) encontrará sempre um Comando que fez a diferença, um Fuzileiro que ficou na História ou um Paraquedista que salvou a honra do convento num dia azarado em que mais ninguém encontrou a solução para o problema.
Em Moçambique, único "teatro de operações" que eu conheci, os Comandos eram chamados para resolver casos complicados, quando a tropa regular não dava conta do recado. Coitados deles, perdidos no meio do mato e a quilómetros da civilização, a sua preocupação era chegar vivo à noite, ter alguma coisa para enganar a fome e água para encher o cantil ou fazer a barba. Tudo o resto era acessório. Os turras minavam todo o terreno à volta dos lugares que eles escolheram para montar as barracas e o segredo era evitar as minas e preservar as pernas. Então os Comandos vinham, escaqueiravam aquilo tudo e recolhiam ao seu quartel felizes e contentes.
Dos páras não tenho muito que contar. Com excepção da operação «Nó Górdio», em que o Gen. Kaúlza de Arriaga envolveu todas as tropas para resolver a guerra, de uma vez por todas, acho que eles não tiveram grande papel distribuido nessa "nossa" guerra. Salvo erro estavam concentrados em Mueda, onde havia uma Base Aérea muito movimentada e davam apoio ao resto das tropas que, em Cabo Delgado, viveram o seu Cabo das Tormentas.
Já os Fuzileiros que era suposto protegeram as costas de hipotéticos desembarques do inimigo pouca coisa podiam fazer, pois o inimigo tinha apenas umas pirogas movidas a pangaia que não representavam qualquer perigo. À falta de melhor ocupação, eram enviados mato adentro para dar uma ajuda aos militares do Exército, em locais específicos, onde se sabia existirem guerrilheiros da Frelimo. Em especial, no Cabo Delgado, andavam no meio do mato, já que defender a costa era pura perda de tempo, pois não andava por ali vivalma.
Na zona do Lago Niassa, já se percebia melhor a intervenção dos fuzileiros, pois a completa ausência de estradas e o terreno muito montanhoso dificultavam e muito a deslocação do Exército. Por seu lado, os fuzileiros montavam-se numa Lancha de Desembarque, subiam ou desciam pela costa do lago até ao ponto mais próximo da operação que iam realizar e depois faziam o resto da caminho a pé. A distância de 20 a 30 Kms da costa era o seu máximo raio de acção. O resto deixavam para o Exército que tinha acampamentos espalhados por toda a província do Niassa, os tais que viam o sol nascer e pôr-se todos os dias e agradeciam por chegar vivos ao fim do dia.
Com o início da construção da Barragem de Cabora Bassa, a guerra que, até ali, só conhecia o Niassa e Cabo Delgado, mudou-se para a zona de Tete e como o grande rio Zambeze era uma espécie de autoestrada para os turras vindos do Malawi, foram camados os Fuzileiros para com os seus botes patrulharem o rio e darem cobertura aos trabalhadores da Barragem. Quem quiser conhecer um pouco da guerra que ali aconteceu pode ler um romance escrito pelo José Rodrigues dos Santos (O Anjo Branco) onde ele conta a passagem do deu pai como médico-chefe do Hospital de Tete, onde eram tratados da mesma maneira os feridos de um e outro lado da contenda. Ali se conta a história do massacre de Wiriamu, com a PIDE e os Comandos a desempenharem o papel de maus da fita e o papá do JRS no papel de anjo bom.
Em 1968, ainda a guerra não tinha aquecido muito, saí eu da Marinha e dei lugar ao meu irmão David que passou um mau bocado, pois foi logo metido na Operação Nó Górdio de onde escapou vivo e depois foi enviado para Tete, quando a coisa estava a ficar mesmo feia. També de Tete saiu sem qualquer problema e foi depois disso gramar os últimos dias na Guiné, vivendo lá o 25 de Abril e ficando prisioneiro do PAIGC. Felizmente, tudo acabou em bem e foi resgatado inteirinho.
Ontem, foi dia de recordar isso tudo, os bons e os maus momentos, os amigos presentes e aqueles que já partiram para o além e ao fim do dia, uns mais bebidos que outros, todos garantiram que no próximo ano voltariam à Escola, onde se formaram, e regressaram a suas casas.