Estive para não mencionar o nome do bicho, não fosse eu irritar alguém, mas como ele já foi fazer as contas com o S. Pedro, faz anos, acho que não fará mal nenhum dizer o nome do meu 2º Comandante, Carlos Rosa Garoupa, filho do Major Rosa Garoupa que foi preso, em 1975, por estar ligado ao golpe do Spínola de 11 de Março.
Depois de uns 10 dias com o braço direito "em talas" para curar a ferida da bala e tirar os poucos pontos que foram precisos para unir as pontas da pele por onde a bala saiu, o braço foi engessado e andei a carregar essa cruz quase dois meses. Usufrui da vantagem de estar livre de todo o serviço e "em especial" de fazer continência aos graúdos com quem me cruzava.
O comandante de uma Unidade de Marinha, como era a minha, tem um poder punitivo muito limitado, só pode aplicar, como pena máxima os 15 dias de prisão disciplinar agravada a que eu tive direito, um pouco antes de regressar a Portugal. Mas isso é outra história e fica reservada para o último capítulo desta saga. Por essa razão, o meu comandante fez uma participação ao Comandante Naval de Moçambique, esperando que no mínimo ele me condenasse a 30 dias no Forte da Xefina.
Em alternativa, podia até mandar-me de volta à Metrópole para cumprir uma pena mais alargado no Forte de Elvas ou no Presídio de Santarém, não seria o primeiro. Mas os dias foram correndo e nada de decisão do Comando Naval. Depois de tirar o gesso do braço, eu era levado todos os dias, de manhã, ao hospital para fazer fisioterapia e assim se passaram meses.
Eu era amigo de um rapaz civil que era familiar do 2º Comandante Naval, um oficial general que funcionava como adjunto do Almirante que era o manda-chuva para todos os assuntos de Marinha, em Moçambique. Sabendo que o meu processo andava lá pelas gavetas da Secretaria, pedi-lhe que falasse com o primo para ver se ele podia fazer alguma coisa para me aliviar a pena. Através dele, soube depois que o meu comandante de Companhia tinha lá ido várias vezes perguntar pelo andamento do processo.
Depois daquele grão de areia que eu meti na engrenagem, a última vez que o comandante perguntou pelo processo levou uma fraca resposta. Não precisa de estar a correr para aqui por causa disso, quando o castigo sair vem publicado na Ordem do Dia. E até hoje, ninguém mais soube o que aconteceu àquele processo, ficou a descansar no fundo da gaveta daquele "primo" até a minha Companhia regressar a casa. Se calhar só a Frelimo deu com ele, quando tomaram conta do país, e foi para a fogueira como todo o resto da documentação do tempo colonial.
E assim chegamos ao mês de Setembro de 1966 e a Companhia recebeu ordens para rumar a norte e render a Companhia 6 (a do famoso Tenente Patrício) que estava em fim de comissão. Eu, armado em forte, fui ao gabinete do comandante e perguntei se ia ficar na capital, pois não acabara ainda as sessões de fisioterapia receitadas. Nada disso, vais connosco e vais ver como, em pouco tempo, o teu braço estica e volta à posição natural com o peso da G3 que vais passar a usar com mais frequência.
E lá fui eu com eles todos para o Niassa, embarcados à pressa e sem preparação no navio Império que tinha chegado de Lisboa e desembarcara meia dúzia de gatos pingados do Exército com destino ao Quartel General. Como tivemos que dormir no convés ou nos corredores dos camarotes de 2ª Classe, em que viajavam os sargentos e furriéis, armámos logo zaragata com a desculpa que sendo da Marinha nós tínhamos prioridade sobre os "magalas". O comandante veio falar co os revoltosos, quase de certeza ansiando por ver-me à frente deles, mas bateu com o nariz na porta, pois eu escondi-me no camarote em que seguia um furriel que eu conheci, em Lourenço Marques, por via de namoros. Eram duas irmãs, uma namorava com ele, a outra comigo.
Depois da curta viagem marítima ficámos em Nacala, perto de 20 dias à espera que houvesse um Nord Atlas livre para nos levar a Metangula. Como isso não fosse possível e tínhamos uma calendário a cumprir, fomos embarcados no famoso «Comboio do Catur» para atravessar meio Moçambique e chegar ao Lago Niassa. Foi uma viagem épica, avisaram-nos para estar a toques com os turras, pois a seguir a Nampula, ou Nova Freixo como último limite, tudo podia acontecer. Desde morteiradas, bazucadas ou rajadas de metralhadora tudo era possível que nos atingisse.
Felizmente, nada disso aconteceu, foi uma viagem sossegada, passámos a noite em Belém, estação já próxima do Catur (fim de linha) e por volta das 6 horas da manhã o comboio retomou a marcha e levou-nos ao Catur, onde mudámos para uma coluna de Berliets do Exército que nos levaram até Meponda. Já não recordo com exactidão, mas acho que só os sub-tenentes, comandantes de pelotão, viajaram connosco, a maralha com mais galões deve ter ido de avião para Vila Cabral, onde também era preciso render o sargento Quartel-Mestre que chefiava aquele entreposto da Marinha.
Eu já era um velho conhecido, em Metangula, tinha de lá saído no fim de Janeiro de 1965, para vir à Escola de Fuzileiros fazer o curso para ser promovido a Marinheiro, mas o movimento que ali encontrei era, totalmente, novo. A velhinha Castor lá continuava com a sua tripulação de 6 homens, mas já tinha a companhia de duas lanchas maiores, se não me engano a Marte e a Mercúrio e, pelo menos, uma LDM e uma LDP. Os 150 homens do Comandante Patrício já tinham partido, mas estava lá um DFE completo (80 homens).
Muitas histórias, muitas aventuras eu podia relatar daquele ano e picos que passei ali, mas basta dizer que foi um tempo pacífico. Nunca me vi obrigado a disparar a arma contra fosse quem fosse. Se dei alguns tiros foi mais para afugentar macacos ou derrubar algum fruto a que não chegava com as mãos. O meu comandante, a quem gostávamos de chamar Peixe Garoupa, nunca se arriscou a ir para o mato connosco, pois podia alguma bala perdida esbarrar-se com o seu corpo.
Uma história que merecia mais detalhes e mais leitores - pelo menos aos protaganistas ainda vivos. Um trajecto familiar para todos os Fuzileiros que tiveram o privilégio de conhecer Moçambique e sairam de lá vivos.
ResponderEliminarUma excelente autobiografia - da vida militar - que deveria imprimir e deixar de legado aos seus descendentes.
ResponderEliminarNa 1ª foto, lá está o nosso herói de queixo apoiado na mão e o braço apoiado na mesa. :-)
Quando fardado, para mim são todos iguais...
Como vai isso do almoço?
Olhe que eu não esqueço!!
O almoço vai ser amanhã, se Deus quiser e o diabo deixar!
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