Com este que aí vem já serão 73 os natais que passei neste mundo de Deus. Uns ficam mais na memória que outros, a páginas tantas é um repetição dos mesmos actos e com as mesmas caras que tudo se confunde na nossa memória. Vou aproveitar a quadra para recordar aqui alguns daqueles que me ficaram bem vincados cá dentro.
Até aos meus onze anos de idade não recordo nada que valha a pena pôr em palavras. Natal de aldeia do Minho, no seio de uma família pobre, comia-se a ceia melhorada e, com alguma sorte, algumas guloseimas preparadas pela mãe e pela avó. No sapatinho, duas ou três nozes, outros tantos figos de ceira e com sorte uma maçã da porta da loja, guardada para o efeito desde Outubro.
No dia 24 de Dezembro de 1955 estava como aluno interno num colégio, em Coimbra. Foi o meu primeiro Natal a sério, com comida a merecer esse nome, vinho para acompanhar e as habituais doçuras de Natal como sobremesa. Com um servente de mesa, fardado de ponto em branco, e tudo o mais que um colégio daquele gabarito podia oferecer aos seus alunos de famílias abastadas (excepto eu que fui lá parar por engano).
No dia 24 de Dezembro de 1962 já estava em Lourenço Marques e a conversa era outra. Primeiro Natal africano e primeira grande bebedeira da minha vida. A Companhia 2 organizou a festa de Natal, tal como é costume em todas as Unidades de Marinha. Já não me lembro da ementa, mas não deve ser muito difícil de adivinhar. O que me lembro é do que se passou depois. Felizmente, não estava na Escala de Serviço e tirando vantagem de um ordenado novo e muito maior do que aquele que tinha dois meses antes, na Metrópole, comprei uma grade inteirinha de Laurentinas, em sociedade com um amigo e camarada do mesmo pelotão que eu.
Depois do jantar, furámos por baixo do arame farpado e fomos até à cantina beber uma catembe e ver se andava por lá a Joana, a Albertina ou outra que quisesse alinhar no truca-truca. Não tivemos sorte nenhuma e regressamos a casa para tratar da grade das cervejas. Depois de bem bebidos, o meu amigo Chico muito mais que eu, decidimos voltar para o meio das palhotas do Infulene e tentar de novo a sorte. Nada, a caça andava fugida. E vi-me grego para arrastar o meu companheiro até casa, pois já não dava uma para a caixa. Rasgou a camisa no arame farpado, resolveu aliviar a tripa no meio do mato, caíu e embodegou-se todo e não tive outro remédio senão carregar com ele para debaixo do chuveiro, com as calças pelos joelhos. Minha Nossa Senhora, que noite!
Depois desse lembro-me do Natal de 1968. Recém-casado e a viver em casa da sogra, foi uma coisa diferente de tudo o que tinha vivido até ali. Principalmente pela companhia que tinha, pela primeira vez, debaixo dos meus lençóis.
No ano seguinte estava na Bélgica, à procura de emprego e não houve Natal, Um ano depois estava na Alemanha, numa pequena cidade 40 kms a sul de Colónia, a mulher em Portugal e fui convidado por uma família alemã para me juntar a eles na Ceia de Natal. Essa família morava no campo, no sítio mais alto dos montes Eifel e nevou toda a noite, de modo que, de manhã, ninguém pôde sair de casa tanta era a neve acumulada nos acessos. Na ceia foi servida a tradicional «Kartoffelsalat», uma salada à base de batata e toucinho fumado com montes de maionese, o que a põe fora da minha lista de pratos preferidos. Um noite bem passada e não quero entrar em pormenores, mas acordei com a filha mais nova na minha cama.
Depois desse, mais nenhum me ficou gravado na memória. Passo por eles como se de qualquer outro dia se tratasse. Abril, Junho ou Setembro, havendo boa comida e vinho para acompanhar é sempre Natal. Mas há uma coisa que às vezes recordo e mexe comigo, depois de casado nunca passei um Natal com os meus pais. Eu reunia a família toda da minha mulher na minha casa e não podia lá ir, eles insistiam em passar o Natal na sua casa, recebiam alguns dos filhos e assim se foi passando o tempo até já cá não estarem mais.
É assim a vida dos pobres!