Decidi acrescentar mais umas linhas às minhas memórias de infância, antes que os meus leitores se esqueçam por completo da primeira parte e depois isto não faça qualquer sentido.
As idas e vindas para a escola da freguesia vizinha, só por si, davam um romance completo, mas para isso eu teria de tirar um curso de escritor, como o Saramago, que inventa assuntos e personagens para dar corpo ao texto, onde não existe nada nem ninguém que tenha a ver com a história que se conta. A ele basta-lhe ter acabado de escrever a palavra "bois" para desatar a falar de tudo e mais alguma coisa que se refira ao tal animal doméstico que é lento no caminhar, mas chega sempre ao fim da viagem com a carga que lhe confiaram. Eu que sou um bocado mais erudito que ele (?), ao ver essa palavra, penso ser francês e ponho-me a discursar sobre bosques, madeira e dos "bichos do mato" que era um pouco como eu me sentia em criança.
De Outubro até começar a Primavera, o tempo é mais de ficar quentinho na cama, ou junto à lareira à espera do pequeno almoço que a avó - mais querida do mundo - me pudesse oferecer. Mas não, em vez disso, ainda o sol vinha em casa do Pilatos e lá tinha eu que me pôr a caminho, com a sacola ao ombro, onde levava o caderno de caligrafia, a pequena ardósia e um naco de broa de milho para comer no recreio, ao meio da manhã. Às vezes chovia, outras trovejava e o frio era prato garantido todos os dias. Por vezes, fazia o caminho a correr para aquecer um pouco ou fazer o tempo andar mais depressa.
No mês de Março, começa a Primavera e o tempo torna-se mais ameno e o passeio por entre campos e bouças é bem mais agradável. Mas mesmo que não fosse teria que o comer na mesma, pois foi a ração que me destinaram. Por falar em ração, lembro-me que a fome era a minha companheira mais fiel, nunca me abandonava. E como, lá diz o ditado, a necessidade aguça o engenho, eu batia na porta de pessoas conhecidas que mal me viam - não esqueçam que a hora de sair da escola coincidia com o almoço - adivinhavam logo ao que ia. Tens fome, queres comer alguma coisa? Essa era a pergunta daquelas lavradeiras, armadas em cozinheiras, que preparavam a refeição para a família e , por vezes, também para os trabalhadores que tinham à jorna.
Bem me lembro do meu pai, numa fase inicial da sua vida, andar ao jornal para os trabalhadores das aldeias vizinhas. O salário era 15$00 por dia, a seco, ou um pouco menos com o almoço incluído. E o pobre do meu pai, muitas das vezes, passou fome para trazer o dinheiro todo para alimentar a família que já ia grandinha, pois filhos já eram 7 e a sogra completava a conta para fazer 10 pessoas. A dieta era muito pobrezinha, pouco mais que sopa de couves galegas e broa de milho, por isso, quando ouvia a pergunta se queria comer alguma coisa, eu encolhia os ombros que era o mesmo que dizer: - se me der eu como!
Para meu azar, a única fruta que havia no inverno eram laranjas e não era raro eu deitar a mão a uma, oferecida ou roubada, para amaciar a broa que só era renovada de 7 em 7 dias e ao sétimo dia era bem dura e já tinha que se limpar o bolor, antes de a meter na boca. Em casa dos lavradores o petisco era sempre o mesmo, uma tijela de sopa, por vezes, com uma rodelinha de chouriço ou um pedacinho de toucinho a boiar lá dentro, o que era mais que suficiente para me fazer feliz.
Dos últimos 3 meses, desse primeiro ano lectivo, nem vos falo, pois além de já ter celebrado o 7º aniversário, já não estava frio nem chovia nem nada mais que me incomodasse por aí além. Ao chegar aos 18 anos, decidi alistar-me na Marinha, como voluntário, e antes de partir fui visitar essas pessoas que me tinham apoiado, quando precisei, e de todos recebi boas palavras e até uns tostões para ajuda da viagem até Lisboa.
Mas antes de isso acontecer na minha vida, ainda tive que amargar muita coisa nos 11 anos que medeiam entre esses dois acontecimentos. O primeiro amargo de boca veio logo na altura da matrícula para a 2ª Classe. A professora da Escola Primária da minha aldeia insistiu em matricular-me de novo na 1ª Classe, dizendo que o que andara a fazer na outra escola não era ali reconhecido, tinha sido apenas uma ajuda para passar o tempo. Era uma mulher de meia idade, solteira, azeda, magricela que tomei de ponta para o resto da minha vida. Não tardou muito para me oferecer uma dúzia de bolos que me deixaram as palmas das mãos em fogo e isso só ajudou a reforçar os meus sentimentos por ela.
Como já era um rapaz grandinho, foi-me distribuída uma tarefa diária para fazer nas tardes - a escola era só até ao meio-dia e meia hora, mais coisa menos coisa - que consistia em ir à procura de lenha para a lareira - a minha avó que era a cozinheira de serviço, dizia-me: - traz lenha sequinha que a verde só faz fumo - fetos e outros restos vegetais para fazer a cama das ovelhas e doa coelhos e depois ser usado como estrume para adubar as batatas na sementeira. Até bosta das vacas que a iam largando pelo caminho, eu apanhei para contribuir com a minha quota parte para o orçamento doméstico.
Enquanto a minha avó se dedicava à cozinha - e a aturar-me - a minha mãe dedicava-se à costura. A sala maior da nossa casa era um atelier de costura, com uma grande mesa - como eu mal chegava à altura do tampo, a mesa parecia-me enorme - onde a minha mãe cortava as peças de roupa que eram depois costurada por ela mesma ou pelas suas aprendizes. Havia sempre, lá nesse atelier, entre 3 e 6 aprendizes, iam umas vinham outras, ou ficavam algumas em casa, quando tinham algo que fazer e que se sobrepunha às lições de costura da minha mãezinha (que Deus tem).
Era um tempo em que não havia o actual "prêt-à-porter" e as interessadas tinham que lá ir, escolher o tecido que mais lhe agradava e tirar as medidas para que a roupa lhes assentasse bem. Depois a costureira-chefe talhava e cortava a peça pretendida, de modo a assentar à cliente que nem uma luva. As aprendizes mais adiantadas já eram capazes de pegar nas peças, chuleá-las e coser umas às outras. A meio da operação, aparecia a cliente, vestia e provava a obra feita, procedendo-se aí aos últimos ajustes para a obra ficar a contento. Não havendo obra deste tipo, faziam-se aventais, algibeiras e, sacas para o pão e farinha, sacos maiores para o feijão ou o milho, além de outras pequenas coisas que seriam vendidas na feira de Barcelos, a cada quinta-feira.
Depois da obra feita era preciso levá-la a casa das clientes e lá entrava eu de novo em cena. Havia clientes na nossa freguesia, assim como nas duas ou três vizinhas da nossa, pessoas que conheceram a minha mãe e só queriam roupa feita por ela. Aquelas blusinhas brancas que ainda se usam hoje, a fazer de camisa, eram o prato forte. O sábado era o dia mais complicado da semana, todas as mulheres queriam a roupa nova para mostrar na missa do domingo e eu é que me lixava que tinha que correr de uma lado para o outro com o embrulhinho da roupa nas mãos.
As aprendizes aceleravam, uma pregava os botões, outra dava os últimos retoques e a minha mãe metia carvão no ferro de engomar para aumentar a temperatura e pôr a roupa a brilhar. Por vezes, enquanto esperava pela encomenda, calhou-me a tarefa de soprar no cu do ferro para avivar o carvão que, às vezes, era de má qualidade e não havia maneira de arder como a costureira queria. - O ferro está frio, põe-lhe mais um pouco de carvão e bufa-lhe até ficar em brasa! E depois a minha mãe pegava no ferro pela asa e abanava-o, para a frente e para trás, a todo o comprimento do seu braço (ainda parece que estou a ver esse filme).
Depois, embrulhavam a peça numa talha de linho que depositavam nas minhas mãos estendidas para a frente e recomendavam: - vai sempre assim, não dobres a roupa que ainda está quente do ferro e fica toda engelhada. E lá ia eu, por caminhos e carreiros, até casa das clientes. Porque é que elas moram tão longe, pensava eu. Por vezes já era noite quando saía de casa, mas era sempre quando regressava. Do medo que eu sentia nem vos falo, o vento a zumbir nas agulhas dos pinheiros, ou as folhas dos eucaliptos que pareciam bater palmas, no escuro da noite, traziam-me ao pensamento histórias de bruxas, demónios e corredores do fado que a avó nos contava, sentados à roda da lareira. Aí, eu corria e ia assobiando uma música qualquer para não ouvir nada do que se passava à minha volta.
Às vezes, uma das minhas irmãs acompanhava-me, por haver mais roupa do que as minhas mãos conseguiam abarcar, ou para cobrar o preço da obra e trazer o dinheiro a bom recato. Elas, talvez por serem raparigas e sentir outros medos que os rapazes não sentem, ainda faziam a coisa parecer pior do que era. Um metia medo ao outro, em vez de lho tirar.
Uma vez por semana, como já referi atrás, cozia-se o pão para a semana, chamava-se "cozer a fornada". E chamava-se assim, porque se enchia o forno de broas de milho, até à porta e se fechava esta com uma pedra cortada ao tamanho da porta que era, por sua vez, lacrada com bosta de boi para manter todo o calor dentro do forno. Escusado será dizer que me calhava a mim a tarefa da recolha da dita bosta. Perto da minha casa, havia um grande bebedouro que recebia a água de uma nascente e onde iam beber os gados da vizinhança, antes de recolher à corte para passar a noite. E eu não tinha mais que fazer do que sentar-me ali e esperar que as vaquinhas bebessem e largassem o presente que eu metia no cesto e carregava para casa, a tempo de a minha avá terminar a tarefa - que era bem pesada, diga.se de passagem - do seu dia de trabalho.
Para não terminar este capítulo a falar apenas de bosta, ainda vos digo que gostava de ajudar a avó a amassar a fornada, duas arrobas de milho e 5 Kilos de centeio, dando umas punhadas valentes na massa com as minhas fracas forças. A minha avó ria-se e enquanto eu o fazia ela respirava fundo duas ou três vezes para voltar a lutar contra a massa e fazer o pão com que nkos matava a fome!