segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Stress pós-traumático!


 Muito se fala desta doença ligada aos combatentes da Guerra do Ultramar. Eu nunca senti nada disso, mas coisas houve que me deixaram a pensar, seriamente, no assunto. Muitas vezes acordei aos saltos, depois de ter sonhado com tiros, minas a explodir debaixo dos pés e morteiradas a assobiar nos ouvidos. A minha sogra, ao ouvir o que a minha mulher lhe contava só sabia dizer: - ele veio maluco da guerra! Isso durou alguns anos a passar, mas continuei com pesadelos ligados à guerra, durante muitos anos.

Vou contar-vos um caso que me aconteceu uma série de vezes, durante anos. Talvez a origem deste pesadelo tenha a ver com uma viagem que fiz, num sábado à noite, para ir ao cinema a Vila Cabral. Depois do jantar (que era bem cedo) o comandante da Base Naval pegou num Jeep Toyota de caixa fechada que levava 6 pessoas e convidou-me e a outros camaradas da CF2 para irmos ao cinema à capital do distrito do Niassa (assim se chamava naquela altura).

Era uma viagem de mais ou menos duas horas para cada lado, se corresse tudo bem e fora da época das chuvas, pois nessa altura era fácil ficar pelo caminho. Uma derrapagem no matope (lama de argila) em qualquer curva podia deixar os viajantes empanados e a precisar de reboque. Num deserto como é o Niassa, bem podíamos esperar sentados.

Mas, voltando ao meu pesadelo, eu sonhava ter ido a Vila Cabral e no regresso esqueceram-se de mim deixando-me para trás. Não tinha forma de regressar a não ser a pé. A guerra ainda não tinha grande significado, nesse tempo, e a população indígena não era tão anti-colonialista como se tornou mais tarde, mas eu tinha a noção que podia esbarrar-me com algum "inimigo" pelo caminho. Mesmo assim e pensando nas muitas provas de corrida, marcha, sobrevivência, etc. que tinha feito na Escola de Fuzileiros, achei que seria capaz de papar aqueles 120 quilómetros a butes.

Era uma viagem noturna - por isso a relaciono com a ida ao cinema - e pensei que entre marcha e corrida poderia chegar a Metangula, antes do meio dia, evitando grande alarme com a minha falta na formatura da manhã. Era mesmo um sonho estúpido, pois mesmo que corresse a uma velocidade média de 12 Kms por hora, demoraria 10 horas a fazer o caminho. Mas nisto dos sonhos tudo é possível. Bem decisão tomada, fiz-me ao caminho.

Ia sempre encostado a uma berma, pronto a saltar para o mato se visse aparecer alguém na estrada. Mas não aconteceu nada, cheguei a Maniamba -  a cerca de 20 Kms do destino - e já era dia. Escondi-me antes de entrar na povoação a pensar no modo de passar por ali sem atrair a atenção de ninguém. Corri para trás da primeira palhota que havia ao lado da estrada e espreitei para um e outro lado, não havia ninguém à vista, por isso decidi ir de palhota em palhota, sempre pelas traseiras e cheguei ao outro lado da povoação sem problemas.

Fui andando, agachado por entre o mato, durante cerca de 1 Km e depois de uma curva regressei à estrada. Fui caminhando com toda a calma, vendo o meu destino já bem próximo. menos de 20 Kms não é obstáculo para um fuzileiro habituado à vida dura e com muito treino nas pernas. Não era bem o meu caso, pois tinha-me fartado de fazer gazeta, durante a instrução, só corria quando não tinha maneira de fugir. Em sonhos a gente nunca se sente cansado, de modo que lá ia eu cantando e rindo a caminho do Lago Niassa.

Às tantas, surge um grupo de pessoas, vindo na minha direcção. Tal como eu os tinha visto, também eles me viram a mim. Como não tinham nada cara de "terroristas" nem havia nenhuma arma à vista, decidi prosseguir a caminhada. Desatar a correr para o meio do mato não me pareceu grande ideia, por isso era seguir em frente e rezar para que nada acontecesse. Quando passei por eles, levantaram os braços em saudação e seguiram o seu caminho. Animado com aquilo e como o terreno era sempre a descer, em direcção ao lago desatei a correr.

Corri até ficar sem fôlego e então ... acordei!

5 comentários:

  1. RESPECT !

    A palavra Combatentes, sempre com maiúscula, ok?

    Quanto ao STRESS PÓS-TRAUMÁTICO DE GUERRA, estás completamente a leste da dita problemática.

    Deixa os sonhos e fantasias,e faz uma narrativa dos teus contactos com o IN.


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  2. O meu marido, ainda agora de vez em quando tem um pesadelo com uma emboscada que sofreram na Guiné, e que acabou com a morte de dois camaradas, e ele diz que se não ficaram lá todos foi porque a pontaria dos indígenas era muito má.
    Conta que desembarcaram na beira de um rio, numa missão que os levaria a pé, até uma aldeia onde se dizia estaria sediado um grupo terrorista. Só que eles esperavam-nos no mato muito antes da aldeia. Ao recuarem para os botes o rio tinha vazado e eles não viram outra alternativa de que meterem-se na lama em direção à água. Ele diz que nunca tiveram tanto medo. Só pensavam que iam morrer todos lá, mas apenas morreram dois e outro ficou ferido num ombro. O fogo dos fuzileiros fez mais estragos e os terroristas, acabaram fugindo.
    Abraço e saúde

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  3. Gosto de ver essa imagem de Vila Cabral. Do lado esquerdo da Rotunda, rodeado de eucaliptos lá está o Quartel do Exécito, onde habitei desde o dia 2 de Novembro de 1963 a Janeiro de 1965, data em que fui transferido com o meu pelotão para junto do Rio Lunho. Permanecemos lá até fins de Março desse mesmo ano. Estivemos ainda em Nova Coimbra e Cobué. De onde em Junho famos para Metangula, lá permanecemos até dia 7 de Fevereiro de 1966, data em que regressamos a Nacala, onde no dia 10 desse mesmo mês, embarcamos no paquete Vera Cruz, com destino a Lisboa, onde chegamos no dia 1 de Março de 1966.
    Um sonho muito bem inventado, gostei da forma como o descreves. Não duvido que tenham ido de Metangula a Vila Cabral para ver um filme. Porque antes do dia 25/26 de Setembro de 1964, em todo o Distrito do Niassa, sem qualquer perigo de sermos atacados podiamos circular.
    Costumo sonhar com coisas que nunca vi nem tão pouco sei se existem, mas não me lembro se alguma vez sonhei com a mina que deflagou na roda da frente lado direito da GMC. Quando do Cobué, para Vila Cabral, o meu pelotão acompanhava um militar, já sem vida, nosso camarada da Campanhia 612, vitima de uma mina que lhe cortou as duas pernas.

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    1. É verdade, andava-se completamente à vontade, até íamos à caça de noite e tudo. Depois do dia 9 de Janeiro de 65, após aquela emboscado no Lipoche, as coisas mudaram de figura e a guerra começou a sério.

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