Tenho que conseguir meter nesta publicação o resto da história, até à minha baixa da Marinha, em 20 de Maio de 1968. Não me posso esticar muito que o espaço é curto e as peripécias muitas.
No primeiro trimestre de 1967 tive uma crise de paludismo que deixou rastos, até hoje. Juntando a isso mais umas mazelas antigas, consegui convencer o bonzão do Dr. Magalhães a enviar-me para Nampula, onde havia um hospital muito mais a sério que o de Vila Cabral. Apanhei boleia no Dakota que nos vinha trazer os mantimentos, de 15 em 15 dias, e lá parti eu para umas verdadeiras férias de 60 dias. Nem por encomenda arranjaria melhor!
Encostado ao muro da nossa base, tinha acantonado uma Companhia do Exército e eu fiz amizade com um rapaz que era condutor-auto. Andava sempre na estrada, entre Metangula e Nova Coimbra, onde estava uma das outras companhias do mesmo batalhão. Soube, quando regressei que tinha sido baleado 5 vezes, durante uma dessas viagens, mas não morrera. Pedi muitas vezes notícias dele, mas ninguém sabia dizer se tinha morrido ou escapado. Acabei por saber o resto da história dele aqui no blog, através de um colega dele que decidiu contar a sua experiência de guerra.
Em Nampula passei uns dias em beleza, houve tempo para frequentar a piscina do Ferroviário, lugar onde pontuavam todas as meninas-bem da cidade, a maior parte filhas de militares que ali prestavam serviço. Ali conheci o fadista Valdemar Vigário que um dia me convidou para o acompanhar numa serenata que foi fazer à filha do comandante. Com essa ainda te lixas, Valdemar. disse-lhe eu, mas a catraia não veio à janela, nem o pai veio mostrar o seu mau-feitio e nós com a garganta seca das cantorias desandámos para a cervejaria mais próxima.
Não havia ainda qualquer instalação da Marinha, em Nampula, pelo que fiquei como hóspede da PSP que me tratou sempre com a maior deferência. Acabados os tratamentos, fiquei uns dias à espera que me arranjassem transporte para casa, mas os poucos aviões andavam sempre ocupados e nunca houve lugar para mim. Um dos polícias aconselhou-me a ir para o aeroporto e pedir boleia a cada avião que por ali passasse e se dirigisse para Vila Cabral. Assim fiz e tive a sorte de viajar num táxi aéreo que ia à capital do Niassa buscar um passageiro importante, talvez um oficial do Exército com muitos galões. A voar baixinho sobre a floresta africana foi a melhor viagem aérea de toda a minha vida.
Chegado a Vila Cabral apresentei-me ao sargento Marques (bom homem) que estava à frente do entreposto da Marinha, naquela cidade. Ele tratava de tudo o que fosse preciso, desde os abastecimentos ao correio e ainda de quem estivesse em trânsito de ou para o lago. A mim, pôs-me uma G3 na mão e disse: - amanhã parte uma coluna de abastecimentos daqui para Metangula, apresentas-te ao oficial que comanda a equipa de segurança da coluna e segues com eles.
Era uma viagem de 120 Kms, nada que fosse obstáculo para um fuzileiro treinado em todas as lides. Só que a coisa complicou-se pelo caminho, a estrada era em terra batida e, embora a estação das chuvas já tivesse passado, havia zonas alagadas nas partes mais baixas do percurso e ao fim de 3 dias de viagem ainda não tínhamos chegado a meio caminho. A coluna era composta por uma auto-metralhadora, uma Berliet e ainda o jipe do oficial que comandava a coluna, além de 30 camiões civis carregados até "ao pescoço" de tudo o que era mercadoria. No primeiro charco, onde caímos, demorámos um dia e meio a atravessar os 30 camiões para o outro lado.
No dia seguinte, chegámos a Maniamba e foi um descanso. A convivência com o pessoal ali desterrado, umas cervejas fresquinhas e qualquer coisa de comer que não fosse ração de combate era o suficiente para fazer daquele momento uma festa. O pior veio depois dessa paragem, estávamos a menos de 30 Kms do lago e esperava-se que o resto do caminho fosse um passeio.
Nada mais errado, a primeira ponte (em madeira) que cruzava um ribeiro de pouca largura tinha sido dinamitada pelo inimigo. Tentámos reconstruí-la mas faltavam as ferramentas para o fazer. Com umas tábuas que sobraram da velha ponte conseguimos criar uma pista para passar a Berliet para o outro lado. A ideia era rebocar os camiões, um por um, mas os condutores civis recusaram-se a fazê-lo. Depois tentámos atravessar o riacho, empilhando todo o tipo de arbustos e pedras para fazer um lastro por onde os camiões pudessem passar sem ficar atolados. No fim de todo o nosso esforço, só a Berliet conseguiu passar.
O dia aproximava-se do fim e o comandante da coluna decidiu que ficaríamos ali acampados até receber ajuda de uma Companhia de Engenharia que estava em Nova Coimbra. Se os turras tinham dinamitado a ponte podiam andar ali por perto e podiam atacar-nos durante a noite, portanto todo o cuidado era pouco para não sofrer um desgosto. Mas o perigo veio de outro lado, para ajudar a engolir os duros biscoitos da ração de combate era precisa água e pessoal dirigiu-se ao ribeiro para ver se conseguia encher o cantil. Ao lado da ponte, havia uma séria de pedras que formavam uma espécie de escadaria até à água.
O primeiro a subir àquelas pedras foi um rapaz alentejano, soldado atirador, que fez detonar uma mina que os turras tinham encaixado entre as pedras com o intuito de apanhar na ratoeira quem viesse reparar a ponte. Ficou com as pernas todas estraçalhadas pelo cascalho que a explosão gerou. Eu que estava relativamente perto fui atirado pelos ares, com a explosão, mas aterrei entre o capim sem um arranhão.
Já estava escuro para pedir o envio de um helicóptero e o rapaz morreria esvaído em sangue se não o tirássemos dali. Entretanto, tinha-se aproximado do local uma patrulha da tal Companhia de Engenharia que ouvira as comunicações via rádio do oficial com os seus chefes em Vila Cabral. Depois de uma breve conferência com eles, foi sugerido que metessem o ferido em cima do Hunimog, sobre uns colchões de ar que alguém tirara não sei de onde, e correr até Metangula, onde os nossos serviços médicos poderiam fazer algo por ele.
Na altura de decidir quem haveria de ir com ele, eu ofereci-me como voluntário. Era arriscadíssimo se fôssemos emboscados por algum grupo de turras ou pisássemos alguma mina, mas eu preferia tudo a ficar ali empancado, até a ponte ser reparada e os camiões seguirem o seu caminho. E correu tudo bem, ao fim uma louca correria por aquela estrada de má memória, entrámos pelo portão da Base Naval que estava escancarado à nossa espera e entregámos o ferido aos cuidados do Dr. Magalhães e do Sargento enfermeiro Santos que era o melhor com que podíamos contar naquele canto esquecido do mundo civilizado.
Depois deste atribulado regresso da minha estadia em Nampula, seguiram-se uns calmíssimos 6 meses até ao regresso da Companhia à capital. Como eu já estava desajustado das tarefas do dia-a-dia da minha Companhia, nomearam-me Mestre de uma pequena lancha de recreio que lá havia e servia para ir passear os oficiais e suas digníssimas famílias, ao domingo Mas deixavam-me sempre em terra, quando isso acontecia, a excepção era quando a razão da viagem era treinar os dotes de pesca de cada um e me lavavam com eles para segurar no leme, enquanto pescavam.
Pouco antes do Natal, mandaram-nos fazer a mala e preparar para a viagem de regresso. Não me recordo de nada acerca dessa viagem, o que me faz crer que correu do modo mais pacífico que se possa imaginar. O habitual era uma viagem no Nord Atlas da FAP, rumo a Lourenço Marques com escala na Beira e deve ter sido isso que se passou.
A uns curtos 3 meses de regressar à Metrópole, mal houve tempo para visitar as esquecidas namoradas e fazer companhia às amigas bifas que vinham sempre para a praia do Miramar, nas férias de Natal. Como tinha substituído a minha mais antiga girlfriend Isabel por uma mais jovenzita Verónica (que me deixou meio assarapantado) e ela não veio nessas férias do Natal de 1967, tive que reatar relações com a Isabelita (e cara alegre).
Nesses entretantos o (peixe) Garoupa pregou-me um desgosto dos grandes. Estava para sair à ordem a nossa promoção a Cabos e ele condecorou-me com 15 dias de prisão disciplinar agravada que, me deixaram incurso no Artigo 62º do RDM que, precisamente, prevê que não mais poderia ser promovido ou reconduzido, obrigando à minha baixa compulsiva, apenas pisasse a Metrópole.
Ainda passei uns dois mesitos sossegado, na Escola de Fuzileiros, até que a papelada desse a volta e a minha baixa saísse à Ordem do Dia. Nesse período de tempo, nomearam-me «Chefe do refeitório» e pelo menos não tive que fazer parte da Escala de Serviço, livrando-me dos serviços de guarda de que ninguém gostava. Aliás, nesse aspecto considero-me um privilegiado, como estive quase sempre em regime escolar, safei-me desses serviços. Se bem me lembro, fiz uma guarda no Corpo de Marinheiros, enquanto esperava transporte para Moçambique, em 1962.
E assim, após o dia 20 de Maio de 1968, disse adeus à Marinha e aos marinheiros, até que, em 2002, me voltaram a chamar para participar nos convívios anuais do meu recrutamento. Depois decidi organizar, eu mesmo, os convívios da minha CF2 e esquecer os do recrutamento em que participavam poucos fuzileiros que não se reviam naquela "malta" da Escola de Alunos Marinheiros. Os fuzileiros são uma tropa à parte e só se sentem bem entre eles, os que passaram pela Escola de Fuzileiros de Vale de Zebro!