Quando voltei de Moçambique, eu não tinha a mais ligeira vontade de voltar para África, mas para dizer a verdade não tinha qualquer plano para o meu futuro. Como voluntário eu não poderia sair antes de completar os 4 anos de contrato. E depois de acabar o Curso de 1º Grau, aceitando as divisas de Marinheiro, entraria nos Quadros Permanentes e passariam a ser 7 anos.
O Valter morria por voltar a Moçambique, pois deixara lá uma namorada que queria ver de novo, encarregou-se de estudar o terreno para saber o que fazer. Soube que estava em formação a Companhia 8 que seguiria brevemente para Moçambique e a Companhia 9 que seguiria uns meses depois para a Guiné. Se não queres ir parar à Guiné, o melhor é fazeres como eu, inscreve-te como voluntário para a 8. Ao fim de alguns dias descobri que ele tinha vendido o mesmo peixe a uma dúzia de camaradas de quem era mais chegado e, em meados de Outubro já estávamos no Corpo de Marinheiros do Alfeite a preparar as coisas para a partida.
Fomos embarcados no Niassa, o pior de todos os navios transporte de tropas que estavam ao serviço das Forças Armadas. Se algum dia eu tive azar na vida, esse foi o meu pior azar. Logo que a Companhia 8 formou pela primeira vez, na parada do Corpo de Marinheiros, e vi as caras de toda a gente que me acompanharia nos próximos dois anos elegi dois como inimigos a ter em conta.
O primeiro deles era um sargento recém-promovido que eu conhecia da Escola de Fuzileiros e era torto como um pau de sobreiro. Se ele tem ido connosco ia ser o bom e o bonito, pois sei que nem ele nem eu nos gramávamos e ninguém fazia segredo disso. Por sorte e interesse de terceiros, ele acabou por ser excluído e veio outro para o lugar dele. O segundo era o 2º Comandante que se pôs em frente da Companhia e disse logo ao que vinha. Era militarista até dizer chega e quem não lhe fizesse a vontade estava feito ao bife.
Eu não o conhecia de lado nenhum e estava disposto a não lhe dar corda. Lá nos meteram a todos naquele ninho de ratos e pulgas que era o Niassa - dois mil homens amontoados uns em cima dos outros como se de gado se tratasse. O primeiro dia foi para procurar um canto onde ficar e depois arrumar a tralha toda que levávamos connosco. No alvorecer do segundo dia, apareceu-nos, lá no porão, onde dormíamos, o Cabo de Dia a avisar que devíamos ir para a formatura em uniforma de ginástica, pois haveria uma sessão da dita, antes do pequeno almoço.
Ficamos de olhos arregalados, pois isso na Marinha só se pratica em Regime Escolar, coisa que não acontecia ali. Eu disse para quem estava ao meu lado, "quem não vai é o filho do meu pai"! E aquilo foi como um "passa-palavra", ninguém compareceu no convés do Niassa para a desejada sessão de ginástica do nosso segundo que andava de um lado para o outro a deitar fogo pelas ventas.
Ele pôs o seu serviço de informações a trabalhar e pouco depois eu soube que ele me tinha elegido como culpado daquela escaramuça. Mas nunca mais disse nada nem convocou outra sessão de ginástica. Desembarcámos, em Lourenço Marques e rumámos à Machava que eu tão bem conhecia. Como não havia lugares pré-destinados, cada um escolheu a tarimba e os vizinhos que mais lhe agradavam. Eu voltei para aquela que já tinha sido minha, durante 30 meses, mas mudei do rés-do-chão para o primeiro andar (fazia menos calor lá em cima).
Não me recordo se começou logo no primeiro dia, mas cedo veio a ordem para, mal tocasse a Alvorada, nos apresentarmos na parada em uniforme de ginástica. E assim continuou durante uns dias, com cerca de 20 minutos de crosse, antes das abluções matinais e do pequeno almoço. O pessoal todo começou a murmurar, dizendo que em nenhuma Unidade de Marinha tinham visto tal coisa. E eu aproveitei para lhes meter um bocado de veneno, dizendo que só iam porque queriam, pois nós não estávamos em Regime Escolar e ele não podia obrigar-nos àquilo.
Aquilo deu resultado, no dia seguinte, quando o Clarim apareceu para tocar a Alvorada, cada um pegou na sua toalha, gilette e saboneteira e foi para a casa de banho, como era costume. Uns minutos depois aparece o Cabo de Dia a avisar que o Comandante esta lá fora à nossa espera e a bufar de impaciência. Ninguém lhe ligou a mínima, uns com a cara cheia de sabão para fazer a barba, outros já debaixo do duche para refrescar as ideias.
O resultado daquela nossa atitude deu direito a um dia inteiro com fardamento de combate completo, capacete de aço incluído, formados na parada, junto à rotunda do Pau de Bandeira e de frente para o Edifício do Comando que tinha uma varanda no 1º andar, a toda a largura do edifício, onde apareceu o nosso 1º Comandante, mas que não pronunciou uma palavra. Aliás, com a passagem do tempo percebemos que ele era bom a delegar nos outros e desaparecer do teatro das operações. Tanto na Machava, como no Niassa, mais tarde, nunca assumiu o comando de uma formatura.
Os grumetes ficaram privados de licenças, durante 5 dias e todos os graduados apanharam 5 dias de detenção. Houve quem dissesse que ele não podia fazer aquilo e que iam recorrer do castigo, mas não sei se isso aconteceu. Eu fiquei com os 5 dias bem gravados na minha caderneta e passei da 1ª Classe de Comportamento para a 4ª. Tenho a certeza que ele voltou a investigar o acontecido (garantiu-me um sargento que havia um grupo de meia dúzia de bufos da PIDE na Companhia que se encarregavam de veicular essas informações) e elegeu-me de novo como culpado e um alvo a abater.
Decorreram alguns meses e, num certo dia em que fui ao SPM despachar um correio, envolvi-me numa discussão com o PM que estava lá de serviço e, ás tantas, ele dá-me voz de prisão. Fiquei um bocado à rasca pois sabia que acabaria por ir para o quartel debaixo de prisão e isso seria um problema. Tentei levar o PM às boas, disse-lhe que era militar como ele e me meteria numa grande embrulhada se me entregasse à ronda, mas ele fez ouvidos de mouco.
Como o Valter estava comigo passei-lha a chave da minha mota com instruções para pôr o motor a trabalhar e se desviar dali uns 50 metros, na esquina da rua ao lado do SPM, e esperar por mim pronto a acelerar. Uns minutos depois fui de novo falar com o sentinela, perguntei-lhe se já tinha pensado melhor e ele disse que não havia nada a pensar, estava a cumprir o seu dever e mais nada. Preguei-lhe um valente empurrão, fazendo-o estatelar-se contra a secretária e a cadeira que lhe servia para descansar as pernas e desandei porta fora a toda a velocidade.
Corria ao encontro do Valter e uns 2 a 30 metros atrás de mim o PM que gritava, "alto ou disparo"! E disparou, uma vez e outra até despejar o carregador, enquanto corria ao meu encontro. Senti uma bala atravessar-me o cotovelo direito e os dedos da mão começaram a pingar sangue. Pensei cá para comigo que não podia regressar ao quartel naquele estado e parei à espera do "magala" que entretanto tropeçara nas botas e se estendera ao comprido deixando escapar a pistola que veio parar perto dos meus pés.
Anda, chama o jipe da ronda para me levar ao hospital, seu marreta, gostas do que fizeste? Não foi preciso esperar muito, com o alvoroço provocado pelo tiroteio estava o Quartel-General, ali próximo, em estado de alerta total e depressa chegou um oficial que deu as ordens necessárias para me levar para as urgências do Hospital Central de Lourenço Marques, onde fiquei internado. Na admissão fui obrigado a mostrar o meu cartão de identidade da Marinha e a primeira coisa que fizeram foi dar conhecimento ao Comando Naval.
Umas horas depois, estava eu esticado numa maca cheio de dores e planta-se na minha frente o 2º Comandante da Companhia de Fuzileiros Nº 8 dizendo o seguinte: - mandaram-me aqui para identificar o culpado da coisa e não fiquei nada surpreendido, só podias ser mesmo tu!